BOM DIA
Trata-se de uma das expressões que utilizamos quando saudamos alguém. Porêm, na língua Kongo, existe entre outras a expressão: luxikamene que traduzida para português resulta em "Como tens passado?". Esta frase no kikongo idiomático é muito profunda, equivale a dizer "como passaste a noite, como chegaste até aqui, enfim como é que tem sido a tua vida e a dos teus.
ARTIGO EM CONSTRUÇÃO: DIOGO CÃO ERA MAÇON?

3.1. Introdução ao Reino do Kongo


Depois de algumas reflexões sobre a matéria em questão, em especial, sobre o cuidado a ter com os grupos humanos que se foram sobrepondo, nos mesmos espaços, com os acontecimentos históricos com eles correlacionados e onde as formas socio económicas variaram com o decorrer dos tempos, sujeitas que estavam ao processo bio-cultural, verificámos que foram produzidas alterações profundas nas culturas presentes e em evolução constante. Sabemos e, por vezes, tememos que a limitação das descrições coevas, por vezes, nos confundam (especialmente, pelas ideias políticas e interesses de cada interveniente nas narrações) conduzindo-nos a algumas reinterpretações delicadas. De uma coisa estamos certos, tentámos exigir, de nós mesmos, o maior rigor científico, ponderando situação por situação e, se possível, tentámos encontrar as respectivas afinidades ou diferenças, porém não resistimos a subscrever e transcrever as palavras de Ruth Benedict acerca de uma sátira de Goethe.

Quem quer conhecer e descrever o vivente,
Procura primeiro desembaraçar-se do seu espírito,
 E depois de ter as diferentes partes na mão,
Falta só, infelizmente, a faixa espiritual que as une.” [1]
         
Esta nossa contribuição para o conhecimento dos contactos sócio-culturais do Reino do Kongo não tem outra pretensão senão procurar melhorar o que já se sabe, e mesmo assim, só neste ou naquele aspecto, menos conhecido, servindo de plataforma de entendimento e análise para o estudo do subgrupo Zombo. Optámos, assim, pela apresentação do capítulo O Reino do Kongo em três fases distintas relativamente à sua existência, realçando que este subsídio se esforça por se basear em factos histórico-sociológicos relevantes e também se reporta a documentos factuais que incidem sobre a fundação do reino do Kongo e se prolongam até ao presente próximo. Nesta perspectiva, apresentaremos, de seguida, uma pequena epítome, de cada uma das fases supracitadas:
         
1.    O Antigo Reino do Kongo – trata-se da fase que corresponde aos mitos da sua génese, à sua implantação e independência, assim como à afirmação simbólica, que no nosso entender (dentro das informações compulsadas) se inicia por volta do século XV e termina, com fases intermitentes de maior ou menor independência, por volta de meados do século XIX. Basicamente, neste espaço temporal, exerceram os europeus e em especial os portugueses, enorme pressão económica, cultural e religiosa, sobre os povos da Bacia Convencional do Zaire, como ficou conhecida pelas potências coloniais a área do espaço geográfico, (considerando como elementos estruturais a exploração de matérias primas e o comércio liberal) ocupado pelo rio Zaire, seus afluentes e confluentes. Nesta secção, procuraremos começar a reflectir com mais frequência, sobre alguns termos das línguas kikongo e kimbundo, que induziram, em cada fase, à compreensão dos significados relevantes do fenómeno linguístico, nos diferentes grupos humanos aí presentes. Será aqui também que nos debruçaremos sobre os assuntos que se referem aos primórdios dos contactos dos potentados kongo, através dos ‘línguas’ zombo, com os navegadores e conquistadores portugueses, nos seus actos expansionistas e mercantis (de ambos os lados, cada um à sua escala) e os posteriores conflitos ocasionados pelas forças políticas, económicas e sociais intervenientes.

2.    O Reino do Kongo dya Ntotila ou Ntotela: Esta fase corresponde ao declínio dos contactos diplomáticos portugueses pois, uma vez estabelecida a confusão das potências negociantes e depois ocupantes, se tivermos em conta as suas próprias formas de entender o processo socioeconómico, os meios materiais e intelectuais de que dispunham, a experiência anterior adquirida e especialmente a capacidade de adaptação física, isto permitiu, com o tempo, um mais profundo internamento no sertão e uma menor dependência dos autóctones. Este foi o caso dos portugueses, ao verem-se envolvidos pelo ancestral processo de mestiçagem física. Os estrategas da expansão marítima e abordagem continental sabiam das suas vantagens e desvantagens. Do que se tem escrito, somos mais sensíveis ao século XIX; aqueles que contactaram, por períodos mais ou menos longos, com as populações ultramarinas, ajudaram a entender melhor as relações sociais que se desenvolveram naquele século, altura em que se intensificaram as explorações científicas na Bacia Convencional do rio Zaire. Foi o período das grandes caravanas, incluindo as que escondiam já os desígnios da ocupação com o intuito da repartição de África pelos poderes europeus, a chamada expansão colonial africana. Embora esteja uma panóplia documental por “descobrir”, há que regozijarmo-nos dos muitos dos documentos legados, por exemplo, as cartas geográficas dos acessos portuários, dos relevos, entre outras, através das quais, as potências coloniais trocaram informações de relevante importância. Este tipo de documentação, reputada do maior interesse, foi sempre sigilosa e nela residiram informações que permitiram a exploração de matérias-primas, defendidas a todo o custo pelos potentados negros.

3.    O Reino do Kongo dya Xingongo e dya Gunga: O último quartel do século XIX, é a fase da consolidação diplomática cristã, junto do então rei do Kongo, anteriormente marquês de Katendi e de seu nome oficial D. Pedro V de Água Rosada, porém, conhecido, em todas as terras do kongo, por Elelo, (o rei dos Panos) Ntotela, Ntinu a Kongo e Weni W’ezulu. Entretanto, o Estado Português vinha já há muito tomando progressivamente conhecimento das mais secretas informações, numa fase que iria prolongar-se durante séculos, repleta de percalços, até à fixação do imposto de cubata, por volta do início da segunda década do século vinte. Dedicaremos maior atenção a esta fase, por ser nela que repousam documentos essenciais de cariz científico, testemunhos vivos, visto se tratar de um passado mais recente. Lembremos, contudo, novamente de que terão, em todos os momentos, de ser analisada a sua fiabilidade.

3.1.1. O Língua Zombo, figura imprescindível das relações entre culturas


Como portugueses, não nos podemos esquecer do centralismo da personalidade de Santo António de Lisboa (ou de Pádua), como arquétipo do língua zombo – mensageiro: de acordo com a sua obra literária, falava aos peixes e, conseguia, assim, atingir os homens: “Vos estis sal terrae”.  
Apagada da memória dos portugueses, a figura do língua zombo reclama o protagonismo de emparceirar ao lado dos embaixadores, sendo dotado de um cariz diplomático. Não teria sido possível aos portugueses e aos outros povos mareantes, alcançarem tantos e tão valorosos progressos no caminho da administração ultramarina, no campo da história, da economia, da educação, da política e dos assuntos sociais. O seu saber contribuiu fundamentalmente para a coexistência pacífica. Da sua capacidade de oratória, dependia o desenvolvimento dos contactos, especialmente os relacionados com assuntos delicados, sendo assim, bem merecem que lhes restituamos a visibilidade. Os tratados celebrados ao longo de séculos, tanto em África como nas Américas e no Oriente, denotam sempre a presença da figura do língua zombo, o linguister dos Ingleses e o linguará do Brasil.
          O seu papel social, mais que linguístico, atesta a sua importância. Por exemplo, Diogo Cão trouxe alguns indígenas de linhagem para Lisboa, de modo a que no regresso da sua primeira viagem ao Congo, falassem e compreendessem o português e trajassem como os nobres. Posteriormente, na sua chegada triunfal ao seu reino de origem, davam notícia ao Manikongo, das maravilhas que tinham presenciado, da perícia dos portugueses ao enfrentar o imenso oceano; informavam da importância que o mercado do Congo tinha para Portugal e, por sua vez, do interesse que o rei africano deveria ter em negociar com ‘gente à sua altura’.A dada altura do processo, também os missionários se deram conta da necessidade e vantagens diversas em ensinar, aos padres negros, a língua portuguesa, para haver maior facilidade na evangelização e no acesso à mentalidade dos subgrupos. Não só, nesta altura, se construíram os primeiros ensaios de dicionários como se iniciaram os primeiros estudos gramaticais, e isso, não teria acontecido senão em escolas de linguística africana (bem como asiática). Estes conhecimentos davam substancial vantagem aos futuros administradores para porem em prática a competência da comunicação: preparava-os para contornar os embustes e perigos diversos contidos nas mensagens mais relevantes com as autoridades nativas. 

          Assim, desenvolviam a capacidade de viver, em duas ou mais culturas, o que lhes facilitava a necessária empatia.

Fotografia Nº7 Língua zombo Bacia Convencional do Zaire, mais propriamente do Chiquengue[2]

Porém os intérpretes linguísticos da administração colonial portuguesa não eram funcionários superiores; a estes bastava, de uma maneira discreta, perceber se a conversa desenrolada à sua frente, conduzia ao disfarce, ao embuste do intérprete na explicação da conversa traduzida ao seu superior. Os língua zombo iam apurando o seu saber, aprendiam que a estrutura discursiva das línguas, em presença, podia ser diferente, pela entoação e pela mímica. Entendiam o cuidado a ter, para dar o devido sentido às palavras. Faziam grandes esforços para encontrar as equivalências na conotação.
          No contexto colonial e especialmente em zonas de diferentes influências, na confluência das zonas portuguesa e belga; da portuguesa e francesa; da portuguesa e alemã e especialmente, por estranho que pareça, na confluência da influência inglesa e portuguesa, o língua zombo não era só o intérprete como também o guia das pequenas e grandes expedições, das pequenas e grandes caravanas. Eram, eles próprios, exploradores, comissários políticos, embaixadores e eram especialmente os consultores dos militares envolvidos em campanhas guerreiras. Influíam decisivamente nas decisões, sendo oriundos das grandes kandas, pertenceram frequentemente às suas linhagens mais preponderantes especialmente de caçadores, exerciam eles próprios muitas vezes a profissão, conseguindo assim as melhores cotações para os seus produtos pessoais e incluíam nas transacções o que iam conseguindo, contrabandeando muitas vezes, durante a noite, utilizando os mais destemidos subterfúgios para, no dia seguinte, apresentarem o seu próprio produto por entreposta pessoa de sua inteira confiança. Detinham a informação necessária às duas partes em presença, e frequentemente eram acusados de traidores pelas suas gentes, pagando com a morte frequentemente a sua audácia. Basta-nos consultar os relatórios confidenciais dos nossos comandantes militares da ocupação efectiva dos territórios Cuamato, Dembos e do Congo, para nos apercebermos do seu poder, da sua influência e como evitavam ou aceleravam os conflitos.
          Porém, a sua eficácia estava também patente no papel que exerciam como porta-vozes dos pequenos e grandes potentados nas relações com os missionários. Podem imaginar-se as dificuldades dos portugueses ao passarem por territórios dos potentados mais aguerridos; sem o tacto destes mediadores linguísticos, as conversações referentes ao pagamento das portagens devidas à entrada e ao retorno da sua caravana, por essas zonas, seria muito mais dispendiosa. Os dois senhores em contacto dependiam sempre da “inteligência”, ou melhor, do segredo que o intérprete pudesse guardar ou revelar. 
          Voltando aos assuntos da missionação, quando nos referimos à documentação colonial, uma das preciosidades é a correspondência do padre franciscano João Gualberto de Miranda.[3] Partiu para Angola a 2 de Julho de 1779, para chegar a Luanda a 4 de Dezembro do mesmo ano. Nessa época, o bispo D. Frei Luís da d’Anunciação de Azevedo era o governador espiritual, civil e militar de Angola. A 22 de Abril de 1777, escrevia o padre Gualberto ao arcebispo Cenáculo informando-o da sua precária saúde e da doença que o prostrou por 3 meses, aliás a ele e aos seus companheiros, informando-o que foram escolhidos quatro missionários com destino à missão do kongo e duzentos e dez carregadores que conduziam os prelados, mais a carga que levavam (onde estava incluído, como sempre, um presente destinado ao rei do Kongo). Para percorrerem, aproximadamente seis dezenas de quilómetros, demoraram três dias, era a povoação do Itábe (deverá o missionário querer referir-se à zona do Tabi, sempre preferida pelas caravanas) “ (…) ao depois principiamos a sentir mais incomodos. Aqui vimos logo as primicias do nosso ministerio, correndo dos matos muitos mininos (leia-se meninos) para receberem o Baptismo. O mesmo sucedeu por todo o Marquezado do Mossul, por onde passamos, sendo de ordinario trezentos a 400 baptismos por dia, e ás vezes mais” (...)[4]
          Abrimos aqui um pequeno parêntesis, porque nos assalta uma dúvida. Uma vez que o processo escravocrata estava em acelerado desenvolvimento, entre as gentes das povoações do reino do Kongo, correria célere a notícia de que caravanas comandadas por brancos se dirigiam para Banza Kongo afim de “resgatarem” escravos. Quem nos garante que essas populações, especialmente as mães, não tivessem já instruído os seus filhos dos riscos que corriam se não se baptizassem? Não será descabido admitir que presumissem que o baptismo, os livraria de tão ignóbil destino. Como é que dois ou três missionários, completamente desconhecedores da língua local baptizariam tantos indígenas? Que poder era o deles?
“ (…) Assim mesmo fomos administrando os Sacramentos a todos que os pedião, e hũ Interprete, ou Mestre da Lingua Portugueza foi o q. nos mandou gente, e alguns infantes juntamente mandarão seus escravos para nos trazerem para as terras do Grão-Duque de Bamba, por este Ducado trabalhamos em excesso em nosso Santo Ministerio, sendo a nossa maior demora em caza do dito Interprete (...)”[5]
          Mais uma vez nos confrontamos com a incontornável figura do língua zombo no processo do contacto de culturas.
          Visto que não é demais enfatizar a figura do língua zombo, novamente registamos a composição de uma coluna militar, nos primórdios do século vinte. Alves Roçadas, como comandante da coluna de operações militares contra o Kuamato, era um administrador e militar repleto de experiência, não descurava o essencial e, quando se refere à composição da coluna militar, são dele as seguintes palavras: “ (…) Aqui deixo, em resumo, indicado o que respeitava á organização da linha de etapas e aos abastecimentos destinados à coluna propriamente dita, questão esta de primacial importância em quaisquer operações de guerra, sobretudo quando estas tenham de se desenrolar em regiões de África.

Composição da Coluna
Em harmonia com o projecto de operações devia ella ser constituida pela seguinte forma: Comando e estado maior: 9 officiaes, 15 praças, 7 civis (interpretes, guias e pessoal telegraphico), 11 solipedes e 1 carro boer.(…)[6]

          Voltando ao navegador capitão e mercador Diogo Cão, este não desejava quedar-se por mais tempo naquelas paragens, a sua demora poderia ocasionar interrogações desnecessárias aos potentados e prepará-los para investidas contra os mareantes que saíssem a terra, entre outras questões. Resolveu então rumar mais ao sul. Deixou a sua gente preparada e, entregou-lhes presentes para ofertarem ao Manikongo. De seguida, rumou viagem, mas chegado ao cabo Lobo, hoje chamado Lucira Grande, verificou que continuava a avistar terra, optando assim por voltar para trás, de regresso ao rio Grande. Quando chegou ao local onde tinha deixado os seus mensageiros, levou consigo de regresso, quatro nobres kongo deixando a promessa que voltaria passadas que fossem quinze luas. Muito mais demorou o capitão a regressar, mas quando o fez, já trazia consigo quatro senhores vestidos de forma europeia, falando a língua de Camões e conhecedores dos costumes das gentes de Portugal, perfeitos língua, prontos a servirem como melhores embaixadores. O que eles transmitissem ao seu povo seria acatado com o maior respeito. 
            Insistiu então o navegador em seguir a rota mais para o sul, voltando a não encontrar o fim da terra. De novo enfrentou o rio Poderoso e desta vez, deparou com uns rápidos que os não deixaram prosseguir. Nos rochedos das margens fizeram inscrições dizendo que eram capitães de Portugal cujo rei era D. João II, e deixou nomes escritos: Diogo Cão, Pedro Anes e Pêro da Costa. Assim, continuou, a pé, para Banza Kongo, levando consigo a proposta de conversão à fé cristã enviada por seu rei ao Manikongo, acompanhadas por muitas outras ofertas. Foi entusiástica a resposta do rei do Kongo, solicitando ao capitão que pedisse por ele missionários, carpinteiros e outro tipo de especialistas. Estes contactos de culturas, entre povos europeus e africanos, foram sendo, a par e passo, penosamente conseguidos pelos portugueses. 
          Em 1491, Diogo Cão efectivou a segunda expedição dirigida exclusivamente ao reino do Kongo, fazendo-se acompanhar pelo embaixador de Portugal e pela primeira missão de dominicanos, para além de numerosa expedição de soldados, operários e colonos, marcando assim o início do grande movimento cristão. Passado pouco tempo, foi baptizado o rei com o nome de D. João, conhecido entre os seus por N'Zinga. Este cerimonial da eleição e coroação dos reis do Kongo, segundo os nossos cronistas, atenta principalmente na adaptação religiosa, intencionalmente introduzida pelos missionários portugueses durante os processos de evangelização. Um pormenor resta semi-silencioso: o significado do cerimonial tradicional e das insígnias entregues a cada novo soberano do Kongo pelo prelado ou o seu vigário[7]. O Mani Kabunga ou Saku ne Vunda da província de Mbata era não só o detentor do poder religioso mas também o principal eleitor dos reis e o sacerdote tradicional da coroação. Por razões mais ou menos explicadas ficamos privados, nessa época, deste valiosíssimo capítulo da etno-história do Kongo, sob o pretexto de que se tratava de cerimónias ridículas ou pagãs. Um número razoável de responsáveis dos altos estudos coloniais percebe que o cristianismo é concebido no Kongo como reforço ideológico e não como exclusividade religiosa. Passaram-se os anos e as linhagens kongo verificaram que, o modo de vida imposto pela nova religião não se adequava aos seus princípios. Revoltaram-se algumas tribos conhecidas por anzicos, presumindo-se serem os actuais batéke ou povos makoko, que habitavam as ilhas e as margens do Zaire. Foi a ocasião dos portugueses demonstrarem ao potentado africano o seu valor, tendo regressado de vários confrontos com o prestígio da vitória.  
          Nestes espaços com preocupações científicas, começamos por coligir bibliografia rigorosa e adequada para suporte do assunto em questão. Naqueles tempos, e estamos a referir-nos aos séculos XV e XVI, era fundamental o suporte em pessoas experimentadas e com uma cultura familiar que permitisse errar pouco, muito pouco, uma vez que as pesquisas sobre povos e locais eram muito demoradas, exigindo recursos financeiros elevadíssimos. Os portugueses só reuniram tais condições com o suporte de recursos financeiros internacionais, especialmente judaicos da Flandres, e rapidamente transformados em agentes de cultura, ciência e tecnologia, também seriam os mais prósperos e interessados intervenientes na grande empresa marítima dos descobrimentos que, de início visava isolar o Islão e detectar o caminho marítimo para o rico Oriente. 
          A história de Portugal e de Espanha foi assinalada pela intervenção do povo judaico na diáspora, nos séculos XV, XVI e XVII especialmente naquilo em que sempre foram mestres, na economia. Aqueles que ficaram, em África, passariam a ser conhecidos por cristãos-novos e a sua excelente aptidão para a contabilidade e proverbial intuição para os negócios, sempre fez deles brilhantes colaboradores das empresas dos descobrimentos marítimos. Não eram por isso estranhos ao poder exercido pelo rei do Kongo, na captura da moeda zimbu, cuja vigilância estava especialmente entregue a padres inacianos e a um familiar próximo do monarca, cujo nome era Mwene Kabunga, a quem competia comandar as mulheres, que faziam a captura do mesmo zimbu, mergulhando nas águas da ilha durante a preia-mar, para procederem à captura do búzio conhecido cientificamente por “cauris” – a [Cipraea moneta][8]


3.1.4 Porquê e Para Quê o Título de Marquês de Katendy?


Fotografia Nº22   D. Pedro V conhecido entre os seus por Ntotila[1]

O reverendo John H. Weeks, antecedeu em Banza Kongo o reverendo George Grenfell, dentro das estruturas da Baptist Missionary Society que, por sua vez, antecedeu por 3 anos a prolongada permanência do missionário católico António Barroso na capital Kongo a partir do terceiro quartel do século XIX. Qualquer deles, conheceu de sobremaneira, as vicissitudes que tiveram de passar para conseguirem manter as relações amistosas com políticos e homens de negócios kongo. Naquele tempo, as notícias tanto de Inglaterra como de Portugal demoravam muitos meses a chegar à foz do rio Zaire. E por vezes, quando aí chegavam, já algumas resoluções haviam sido localmente tomadas e os missionários mais do que ninguém, tinham de encontrar soluções adequadas à sua continuada permanência.
Um ilustre kongo, com  reputação reconhecida como homem de negócios era  Elelo, o Rei dos Panos (lele em kikongo). O Reverendo Weeks, descreve este personagem [2] que provinha de uma família da mais alta linhagem, os Katendy  e tinham como lema: katendy katendwa nzala o makanda manene, que queria dizer aproximadamente o seguinte: as unhas de Katendy não deviam de ser cortadas ou o seu clã morreria, por outras palavras, nunca se dar por vencido e não se submeter jamais a humilhações. Por nós, admitimos que esta questão se prenda com ‘não sujar as mãos’, fosse com o que fosse, razão para as unhas crescidas. Estes epítetos laudatórios e títulos nobiliárquicos, reflectem de sobre maneira, o ascendente dos valores ocidentais e como os kongo os assumiam. Mesmo a questão do título de marquês, que antigamente só era atribuído a quem comandava os guardas das marcas ou fronteiras de um Estado. Só a alta nobreza o podia utilizar e acima dessa honraria só a de duque havia, uma vez que o título de conde lhe estava logo abaixo. Assim, antes de vir a ser D.Pedro V de Água Rosada, Elelo era portanto Wene Katendy, Marquês de Katende para o governo de Luanda. Prova que as diplomacias (tanto inglesa como portuguesa) nada deixavam ao acaso na transformação da ideologia Kongo, 
O ultimo rei do Kongo, que conservou todas as prerrogativas foi D. Pedro V ou D. Pedro de Água Rosada, no reinado do qual a Conferência de Berlim começou o esfacelamento dos seus domínios e em que se efectuou a reocupação de S. Salvador, por tropas e autoridades portuguesas!
O reverendo Weeks, afirma ter acompanhado na altura, as formalidades da compra do título de marquês e uma das condições para a sua posse prendia-se com a capacidade económica do pretendente ao título. Deveria ser suficientemente rico, para ser o titular. Se na altura da sua morte o seu legítimo herdeiro não tivesse posses para utilizar condignamente a qualificação, ou tivesse alguma razão para não querer usá-la, podia com consentimento do rei vendê-la a outro chefe, enquanto este vivesse. Esta condição não permitia ao seu herdeiro entrar directamente em posse do título, salvo se tivesse permissão da família que originariamente o detinha, e mesmo assim, para que essa autorização se formalizasse deveria haver o pagamento de um valor estipulado. Caso tal não acontecesse, o rei intervinha e impossibilitava a transferência, o que não impedia que o monarca deixasse de receber em qualquer circunstância um valioso presente oferecido pelo destinatário da dignidade.
Neste caso específico, foi enviado um “embaixador” para solicitar ao rei a concessão do título, levando de presente [3] “twenty pieces of very good cloth containing twelve yards each, three goats, one large pig, and four barrels of gunpowder” que na altura teriam o valor de 10 libras. Como curiosidade deixamos esta nota: o importante eram as vinte peças de pano e os barris de pólvora. Iniciavam-se assim os passos fundamentais para que o Marquês de Katenda, o futuro Ntotila, se viesse a legitimar como D.Pedro V de Água Rosada.

Era um homem alto e gordo, a tal ponto obeso, nos últimos tempos, que só saia em cadeira de rodas, oferta dos missionários ingleses. Era bom para a sua gente,  simpático e tratável e mostrou-se sempre amigo dos portugueses a quem era reconhecido, por dever-lhes o trono, de que se apoderara o seu rival Álvaro Dongo.[4]


Deverá ter havido pouca correspondência epistolar, trocada entre o Ntotila  Kongo D. Pedro V e o rei de Portugal D. Luís, de qualquer modo, essa correspondência era sempre escrita pelo secretário do Ntotila. Admitimos que o missionário superior da igreja Católica orientasse este tipo de relações. O documento que se segue foi microfilmado a nosso pedido no Arquivo histórico ultramarino.[5]

Esta secção toma invulgar importância no contexto da política internacional em terras do Kongo, pela quantidade e qualidade das informações conseguidas. A organização dos dados contribuem, estamos certos, para a compreensão das relações políticas e sociais que se manifestaram na zona, desde o limiar do 3º quartel do século XIX até à ocupação efectiva pelas potências ocidentais interessadas. O fenómeno não deixou de repercutir-se dada importância das resoluções emanadas da Convenção de Berlim de 1884/1885. Embora esta convenção marque historicamente a data da posição de acerto final entre as potências ocidentais intervenientes nesta zona de África, profundos conflitos bélicos se travaram e muito trabalho diplomático antecedeu a célebre  convenção.

3.1.3. A Importância da Missionação Cristã no Reino do Kongo no Século XVIII


De entre os muitos documentos compulsados, há um que merece particular destaque pela forma como trata os assuntos do reino do Kongo: de dentro do reino para fora. Trata-se da obra “Aperçu de la situation du Congo et Rite d’Election des rois em 1775”, da autoria de Louis Jadin, sobre os tempos de missionação do Padre Cherubino da Savona, no Congo de 1759-1774 de que destacamos a carta geográfica que se segue, na qual, estão assinaladas as localizações das mbanza, das missões operacionais e antigas missões.

Na carta, como podemos ver, encontram-se assinaladas localidades que se revelaram importantes para a missionação. É o caso de S. Salvador, também designada por Mbanza Kongo (Mb. Kongo); Mbanza Sundi; Mbanza Zombo e Mbanza Bamba. São também assinaladas as missões de Kibango, Mokondo (Mbanza Mokondo) e Mbamba (Mbanza Mbamba); Bengo e Massangano. Curiosamente, ao assinalar Kaenda como missão está-se a omitir que se trata do topónimo do principal dembu e filho do rei do Kongo. [1]

É de notar ainda que, no canto superior direito da carta onde se lê “Ingobello”, há uma espécie de lago mesmo ao cimo do rio Kongo. Esta região não é outra coisa senão a região dos pumbo de Willy Ball (no seu mapa de route de traite Bazombo)[2] fornecedora de um grande número de escravos e de onde deriva o termo pumbeiro ou pombeiro, como já referimos, conhecidos como ‘os traficantes de escravos’.

De acordo com Jadin (1963), que por sua vez se baseia no testemunho do padre Cherubino, as missões católicas eram lugares de conquista e onde, mais tarde, houve presídios, no sentido de uma ocupação demorada dos portugueses. Nesses presídios, os missionários edificaram hospícios e igrejas. Aí, residiam habitualmente um missionário ou dois. Os capuchinhos da altura recebiam escravos, como presente dos chefes locais, pela prática do seu ministério. De notar que estes mesmos escravos chegavam a formar aglomerados de centenas de indivíduos. Eram privilegiados em relação à restante população, mesmo quando os missionários se ausentavam durante alguns anos. No entanto, houve casos em que algumas missões tiveram que ser abandonadas, por serem demasiado insalubres para a vida do ser humano. É o caso da missão de Kalumbo, referida no mapa como ‘ancienne mission’, situada a norte de Luanda na região do rio Dande. Era uma antiga missão abandonada pelos portugueses, dada a proximidade da lagoa infestada de mosquitos causadores das febres palustres. Nos documentos analisados por Jadin (1963), o padre Cherubino referia-se às povoações, utilizando, em primeiro lugar, o nome que lhes era atribuído pelos naturais da região. Nos casos em que tal sucedia, o padre Cherubino pretendia dizer que se tratava de um lugar não vassalo.

A carta geográfica que se segue, datada dos anos sessenta do século passado (das últimas utilizadas pela administração portuguesa), torna-se útil para o estudo das questões da bacia do Zaire. Algumas das referências toponímicas, constantes nos mapas já mencionados, tiveram uma importância relevante: primeiro, pela sua localização, face à proximidade das linhas de água; segundo, pela sua posição face aos cruzamentos das nzil’a, caminhos das caravanas comerciais zombo; terceiro, pelas suas características de defesa situando-se em sítios estratégicos, vatas (aldeias) de atalaia, como era também o caso de Banza Kaenda, assinalada no mesmo mapa (à extrema direita de Luanda) e designada como sendo a capital dos dembos ou ‘O Ninho da Águia’ (Magno 1934:7).



                                      Carta da “Zona Norte da Província Portuguesa de Angola” [3]

A posição estratégica das vatas e a visão apurada dos mubemba (que ainda hoje significa ‘o homem águia’, dada a sua agudeza de visão, vendo e pressentindo o perigo) assumiam, em tempo de guerra, um valor excepcional. Esta característica de apoio à liderança era ‘pertença’ da consanguinidade de algumas linhagens e secretamente ministrada pelos mestres de gerações de uma família detentora do epíteto laudatório. A sua origem repousa numa das kanda, a kanda (clã) zombo, pertencente à árvore genealógica do primeiro líder Nsaku Lau ou Mani Kavunga e em torno do seu subgrupo (conhecido até ao final da época colonial por ‘tribo’[4]).

É curioso notar que as missões católicas de Kaenda e Mbanza Mukondo, assinaladas pelo padre Cherubino na região do Kusso, no século XVIII, também o são por Alfredo Morais Martins em pleno século XX (1973:120):

“ (...) Ao interrogarmos o velho Movodi, chefe de uma das principais linhagens da região, sobre o assunto, ele informou-nos que os antigos diziam que no cume de uma colina próxima, sobranceira à actual Mbanza Cusso, tinha existido, há muito tempo, uma casa onde viviam brancos, «que não compravam nem vendiam». (…)”

Na citação que a seguir apresentamos, Jadin (1963:3) revela bem a situação política vivida no Kongo, no século XVIII:

“ (…) La documentation de la Propagande, les rapports des préfets apostoliques mentionnent la réception d’ambassades ou des lettres de rois annonçant leur élection et demandant les pères pour la bénédiction ou sacre royal. Les gouverneurs généraux de l’Angola, de leur côté, font part au ministre de la marine à Lisbonne du décès des rois et accusent réception d’ambassades ou des lettres concernant leur élection, lettres qu’ils disent joindre au dossier. (…) ”

Na sua opinião, o rei do Kongo foi senhor absoluto sem qualquer vassalagem ao rei de Portugal. Porém, no tempo do padre Cherubino, o reino já não representava sequer uma amostra do poder que tivera. Os chefes dos clãs (as célebres kanda) comportavam-se como senhores absolutos, mantendo, de preferência com Portugal, o negócio dos escravos. Um dos mecanismos adoptados que permitia a eliminação de possíveis opositores políticos era o ordálio (veneno justiceiro), conhecido entre os kongo por cassa in cassa (Jadin 1963: 26), utilizado normalmente em casos de suposta infidelidade conjugal por parte das mulheres. Assim, aquele ou aquela que reivindicasse inocência deveria submeter-se à prova do ordálio. Por todos os motivos, o rei ou o colégio real utilizaria com alguma frequência este método de extermínio de adversários políticos.

[1] Também se encontra assinalado, na carta, o planalto identificado como Mbanza Zombo. De facto, ainda hoje, existe a povoação ‘com mercado’ e dista de Makela do Zombo, cerca de quinze quilómetros, na direcção do Mavoio, indo depois cruzar-se, mais à frente, com Mbanza Kibokolo. O Mavoio é o local de exploração das minas de cobre da antiga Empresa do Cobre de Angola, pertença da maior empresa portuguesa, a Companhia União Fabril, propriedade do empresário Alfredo da Silva. Ainda hoje, estas povoações são perfeitamente reconhecíveis em cartas geográficas recentes, fazendo parte da memória colectiva dos actuais habitantes da região.

Notas de Rodapé
[2] Mapa apresentado no frontispício desta dissertação.
[3] Caio, Horácio (1961) Angola – Os dias do Desespero. Edição do Autor. Lisboa, p. 146.
[4] O desuso deste termo tem muito a ver com o costume. Diversas universidades brasileiras continuam, por uma questão de uma mais rápida identificação, a utilizar o termo, tal como fazem com o termo ‘raça negra’ ou ‘raça branca’.

3.1.2. A moeda ‘Zimbu’ e a sua primazia entre outras ‘moedas’ de troca

Neste império, só não era cunhada a moeda porque, em sua substituição, existia uma concha denominada – ‘zimbu’ – autêntica moeda pré-fiduciária, à qual eram atribuídos valores cambiais. De entre as obras que se referem ao ‘zimbu’, destacamos pelo detalhe das suas informações: “O Sumário e descripção do Reino de Anguola e do descobrimento da ilha de Loanda e da grandeza das Capitanias do Estado do Brazil”, da autoria de Domingos de Abreu de Brito escrita no ano de 1592[1]. Estes búzios apareciam em toda a costa de Angola, embora os mais belos exemplares fossem da ilha de Luanda. Contudo, a sua apanha era autorizada pelo rei do Kongo, apenas nas quatro léguas do lado norte, em alturas de seis ou sete braças e em quantidade estritamente suficiente para as necessidades, de forma a evitar que chegasse ao conhecimento do rei de Portugal, notícia de tanta riqueza. Ao que parece, Paulo Dias de Novais, embaixador do N’Gola junto do rei de Portugal e sequentemente, representante do N’Gola junto ao rei do Kongo, não teria dado conta ao governo central de tal negócio e, daí as precauções tomadas por aquele soberano.

Com efeito, o resultado da extracção, no século XVI, subia a sessenta contos, quantia essa dividida entre o rei do Kongo e os governadores da ilha. Para gerir e fiscalizar a exploração do zimbu, havia um órgão coordenador, composto por três nobres Kongueses – D. Pedro Maniloanda, D. António Maribunda e D. João Maniposo, para além do negro Fernão Duarte, como escrivão. Esta referência particular à circulação de diversas “moedas”, como objectos de troca, mereceu, à chegada de Diogo Cão e seus companheiros, a maior atenção, (desde logo, apelamos, para o cuidado a ter com as enormes diferenças conceptuais, relacionadas com o valor das diversas trocas em causa). O maior conhecimento acerca das diferentes formas de troca, entre as populações contactadas, nos pontos de escala escolhidos pelos navegantes, de acordo com os seus informadores e guias, fazia dos portugueses sérios competidores, face a outros grupos, vindos do interior, em pequenas ou longas caravanas, dependendo o seu tamanho, em termos de carregadores, do tipo de mercadorias e dos volumes a transaccionar. Tratava-se da primeira vez que estas populações traficavam com gente vinda do mar, o que lhes trazia enorme vantagem, em relação aos mercadores islamizados. Parte das populações acreditava que os seus antepassados vagueavam pelo oceano e, assim, imediatamente formularam diferentes hipóteses que justificassem a sua presença, entre elas, aquela questão do termo n´dele e o medo relacionado com o seu significado. Como já foi referido, n’dele era uma espécie de sombra, de alma que os atormentava nos seus sonhos e superstições. Não custa, ainda hoje, admitir, que durou algum tempo a admiração e o espanto que os portugueses causaram nas incrédulas mentes dos mercadores zombo. Porém, e após as primeiras e demoradas embaixadas portuguesas, começarem a perceber que essas ditas almas também invejavam, também morriam e que, além disso, podiam ser confrontadas no seu saber.

Os n’ganga [2], mais propriamente os possuidores de poderes mágicos, termo adoptado pelos missionários portugueses face aos feiticeiros zombo, na altura pouco conhecedores da cultura exorcista kongo, podiam e deviam enfrentar com êxito, os n´ganga ya Nzambi ou nganga yo missa, como começaram a apelidar os sacerdotes estrangeiros. Estes termos estavam envolvidos, não só pelo poder maléfico, como pelo benéfico, dependia do ponto de vista como era encarado, se do nosso se dos outros. Porém, e infelizmente para eles, a sua bolsa de valores locais era distinta da bolsa de valores da velha cidade europeia de Bruges, local, como é sabido, onde se reunia a alta finança, os banqueiros, os mercadores, os negociantes, os agentes de câmbio, entre outros agentes financeiros, para procederem às suas excepcionais trocas. Esta gente e processos de troca eram também desconhecidos dos capitães do mato, nome apropriado, desde sempre, para aqueles que andaram mourejando pelas terras do sertão. 

Logo após as primeiras transacções, os cristãos-novos, excelentes negociadores, que acompanhavam as expedições, encontraram forma de se aproveitarem do muito menor conhecimento dos nativos zombo, naquilo que agora chamamos de engenharia financeira. Essa forma de encontrarem vantagem veio através da troca convencional de mercadorias, existente entre as populações locais. A tipologia de troca que mais os interessou foi a moeda zimbu que se tratava de um búzio do tamanho de um bago de café e constituía moeda corrente, em quase toda a costa ocidental africana. O historiador Elias Alexandre da Silva Correia, por sua vez, define essa moeda com as seguintes palavras: “Este miudíssimo Marisco – de figura piramidal, matizado de delicadas pintas pretas em ordem espiral, sobre uma superfície lisa, brilhante, de cor de pérola –, é pescado por meio de cestinhos sobre a costa do mar grosso.”[3]

De facto, esta moeda-mercadoria aparecia em toda a costa de Angola, mas a da ilha das Cabras, como era conhecida, pelos locais, a ilha de Luanda, não se confundia com os zimbu demais. Esta prática de recolha era exercida por mulheres, exímias nadadoras, que se afoitavam alguns metros, mar a dentro. Nesse local, mergulhavam, enchiam de areia os seus cestos cofos para, já na praia, fazerem a escolha dos búzios, classificando-os de cascalho, meão e inclusivamente distinguindo o macho da fêmea. Isto significa que o verdadeiro zimbu não se confundia com outros búzios – ‘bagos de coral falso’ – de menor valor, o que não invalidava a concorrência “desleal”, para o pagamento de pequenos serviços como o fornecimento da água e da lenha.[4]

A moeda Zimbu[5]

Paulo Dias de Novais, personalidade supra-referida, para levar a bom termo a conquista de Angola, usou todos os esquemas ao seu alcance, legais e ilegais, para desipotecar os seus bens e os da sua família, afectos ao compromisso empresarial assumido. De tal forma lhe correu mal a conquista de Angola (face às suas expectativas), empresa de grande vulto para a época e para os meios envolvidos, o que o levou “ (…) a enviar directamente escravos para o Brasil, sem a necessária avença, pelo que os mesmos são apreendidos. (...) Alegou o capitão que a carga se destinava a conseguir pólvora e «outras coisas necessárias para a conquista em que o dito governador Paulo Dias andava. (…)” [6]

O que se depreende daqui, é que Novais não estaria disposto a entregar parte dos lucros de exportação a outros intermediários. Porém, outros interesses e de maior amplitude se teriam interposto. Para uma melhor compreensão (visto que dedicaremos à escravatura um subtítulo) do tipo logística necessária basta lembrar que, em primeiro lugar, como meio de transporte, a caravela era muito limitada na carga a embarcar, o que pressupõe algumas unidades em constante movimento; em segundo lugar, o estacionamento de escravos nos portos de embarque era muito dispendioso, tendo em conta que os mesmos teriam de recuperar fisicamente, para poderem enfrentar a longa viagem que se lhes deparava pela frente e, finalmente, em terceiro lugar, o objectivo do responsável pela caravela era distinto do objectivo do dono do negócio. Portanto, não era fácil a execução de tamanha tarefa, apesar dos conceitos da época, deveria de haver gente sensível aos horrores enfrentados por aqueles desgraçados seres humanos.

Outras moedas foram coabitando com o zimbu, tais como, por exemplo, o cobre, o bronze e o latão. Estas moedas apresentavam diferentes formas e as mais usuais foram as manilhas de cobre e de bronze, algumas de espectacular beleza como é o caso das cruzetas e do fio de cobre. Sobre estes artefactos existe uma numerosa e cuidada bibliografia a que faremos referência. Os documentos históricos mais remotos indiciam, em Angola, a existência de gente especialista na extracção e preparação dos referidos metais: os célebres mubire, na língua kimbundu e que, em kikongo, eram conhecidos por nkelexi; segundo a pormenorizada descrição do missionário Cordeiro da Matta tratava-se de uma “Raça ou família que (supersticiosamente) só pode dedicar-se ao ofício de ferreiro e trabalham em tendas volantes nas feiras do sertão (...). Os negros Mubires são oriundos do Loango e foram mandados para o Encoge em 1759 quando se fundou este presídio. São outros os usos e os costumes destes negros. Entre eles não existe escravidão, são activos trabalhadores e inteligentes para o negócio.”[7] . Quando se menciona a data de 1759, sabemos que Portugal se encontrava sobre as mãos de ferro do Marquês de Pombal e que a siderurgia de Nova Oeiras em Angola se prende com o presídio de Encoje. Na Revista Militar Portuguesa, encontramos ainda inestimáveis legados, entre eles o seguinte sobre o kongo e os dembos: “ (…) Estes Mubires estabeleceram-se nas terras de Muene-Coxi e com algumas fazendas, compraram escravos que foram distribuídos por entre eles, para propagação da raça da qual se distingue o ramo Mahungo. Os mubires são negros tratantes e feiticeiros que vivem espalhados pelo reino do Kongo, uma espécie de ciganos, tão temidos como feiticeiros que ninguém ousa tocar um objecto Mubire.(…)”[8]

Eram uma sociedade secreta, profundamente fechada sobre si própria, os senhores dos Dembos consideravam-nos os melhores defensores da sua independência e liberdade, sendo por isso muito disputados. Nas reais fábricas de ferro de Nova Oeiras, trabalhavam-no homens deste dembado. 

Estas considerações tornam mais compreensível a procura e o grande valor deste instrumento de troca com carácter de moeda. A própria utilização como ornamento de manilhas, colares e outros enfeites não estavam ao alcance de todos, diríamos que eram privilégio de uma minoria, por isso, os europeus bem depressa engendraram o modo de se assenhorarem do seu controle. Quando Serpa Pinto atravessou África, de lés a lés, deixou relatos assinalando as regiões de grandes artistas como era o caso dos luchazes, hábeis na confecção de manilhas. Usavam o cobre que os lobares lhes levavam da Lunda, para permutar a cera. [9] Foram os seus descendentes que, em 1961, estiveram na frente da fabricação de espingardas cujos canos eram feitos de tubos galvanizados de canalização para águas domésticas e a maioria com ¾ de polegada de diâmetro, os célebres kanhangulo, ao ponto de ter sido proibida a venda, no norte de Angola, da referida tubagem. Naturalmente que, nessa altura, estariam na posse das populações kongo, armas fabricadas a preceito, mas essas eram compradas no mercado comercial.
Fotografia Nº Captada especialmente para mostrar os artigos negociados. Colecção de uma igreja[10]

A oportuna fotografia descreve-nos ‘o espírito comercial da época’, forma característica de mostrar os diferentes produtos. Só o ‘tal espírito comercial de cada época’ fazia dos diversos tipos de mercadores, os profissionais credíveis. As populações, nos diferentes tipos de mercado, sempre foram e serão impressionadas por aqueles que, por esta ou por aquela razão melhor as convencem a comprar o seu produto. Na fotografia pode observar-se a oferta comercial de origem europeia, que corria como “moeda de troca”, na Bacia do rio Zaire, e mesmo em toda a África negra. Como podemos observar, podem distinguir-se: varetas de cobre, a garrafa de aguardente, a lata de querosene, a Sombrinha de Sol (ou chuva), usada quase exclusivamente por aquele que tinham o poder mágico de ‘mandar vir’ a chuva; ao centro, uma cabaça com pólvora, e por detrás desta, um tapete. Junto ao guarda-chuva estão ovos e, ao centro, um prato com caixas de fósforos. À frente, observamos um molho de detonadores. Do lado direito, identificamos peças de tecido. Estamos convencidos que a disposição dos produtos, em cima da mesa, não era aleatória, embora houvesse sempre vendedores que não davam importância à disposição dos artigos em exibição.

Voltando aos produtos de troca em cobre, latão e bronze, o missionário John H. Weeks (1911:1), dá-nos uma singular panorâmica sobre as transacções de uma vareta de cobre, começando por descrever o seu percurso. Primeiro, diz-nos que os Ingleses no século XIX, vendiam nas melhores condições as varetas de cobre obtidas nas suas fundições, em Inglaterra. De lá, exportavam os derivados do cobre, que obtinham também em África. As varetas de cobre constituíam com os têxteis, a pólvora, as armas e o rum, parte dos principais produtos perfeitamente transaccionáveis, este último obtido a baixos preços nas destilarias da América central e do sul. 

Preferimos transcrever, em tradução criteriosa, a citação do missionário (1911:341): “ (...) Medindo agora só onze polegadas – Numa grande área do Congo os fios de bronze maleável de calibre 34 ainda são, e tem sido desde há muitos anos, a moeda de troca e a medida de valor entre os nativos. Estes fios foram provavelmente e, em primeira hipótese, introduzidos e utilizados para efeitos ornamentais, como junção para lanças e facas, ou amolgadas em barras ou arame para decorar os cabos das suas melhores lanças e remos. No princípio, o arame era comprado em vários comprimentos e de muitas espessuras, de acordo com as necessidades do comprador e do seu poder de compra, bem como o valor do artigo que ele oferecia ao comerciante em troca daquele. Mais tarde eles acharam de mais fácil manipulação tê-los em comprimento de trinta polegadas, e estes eram encurtados por aqueles que tinham mais, cortando meia polegada de cada um e fundindo os pequenos pedaços para enfeites em forma de anel para o tornozelo, para o pescoço, e para os braços, adquirindo também os seus arames só para os cortarem, isto é, retiravam pequenos pedaços de cada vareta e encaminhavam essas mesmas varetas como moeda de troca pelo seu valor anterior. Tantas vezes isto foi feito que as varetas de trinta polegadas ficaram reduzidas a vinte e sete polegadas e consequentemente os vendedores de mercadorias procuravam as varetas mais curtas do que as mais compridas. 

Este processo de cortar pequenos pedacinhos das extremidades aconteceu durante trinta anos, e o resultado é que a vareta de cobre foi gradualmente diminuindo em comprimento até agora, no Baixo Congo, é dificilmente de cinco polegadas, e entre os Boloki do distrito de Monsembe é de onze polegadas, e se a introdução do dinheiro não destronar a vareta ela medirá só quatro ou cinco polegadas também nesta zona. (…)”

É claro que, à medida que a vareta diminuía de comprimento o vendedor de um artigo pedia uma maior quantidade de varetas pelas suas mercadorias. Assim um artigo que já tinha valido três varetas de trinta polegadas agora valia trinta varetas de cinco polegadas; a vareta não só encurtou o seu comprimento, mas também através da introdução de tanto cobre no país, durante o último quarto de século, viu o seu valor diminuir drasticamente.

As informações obtidas pelos autores das fotografias, a última apresentada e a que se segue, fazem crer que o traficante branco se norteava sempre pela libra inglesa para avaliar os produtos a comprar. O hábito de negociar entre os kongo, induzia-o a uma percepção rápida quanto a se valia a pena ou não, continuar a negociar determinado produto. Nesta circunstância, apesar dos razoáveis conhecimentos da língua nativa o funante
[11] branco não deixava de recorrer a um língua zombo. Por outro lado, as populações nativas do Congo tinham sempre, à sua maneira, exemplos contabilísticos em mente, por exemplo: quantos fios de bronze seriam necessários para o “bride price” ou alembamento, como se diz em kimbundu, sabendo que a barra de bronze, por si só, valia o “preço da noiva”. Ainda hoje, estas transacções revelam ser algo de sui generis, sendo, por vezes, revestidas, de um teor teatral: é ver quem mais dissimula o desejo de fechar o negócio e quem mais simula o interesse no produto

Naturalmente a desproporção tecnológica para a obtenção dos derivados do cobre, do bronze Exemplos de moeda nativa[12]

(resultado da mistura do cobre com o zinco, que dá ao produto acabado um tom parecido com ouro velho) e do latão bem como do ferro davam e dão, vantagens inultrapassáveis aos detentores daquilo a que chamamos a tecnologia de ponta. Como já referimos, este processo fazia com que o ferreiro parecesse um mágico, um muntu wa bi’, um homem mau. No dizer dos kongo, quando se pronunciava o nome da seita dos ‘mubire’ (atrás identificados), falava-se dela com o maior respeito, tratava-se duma profissão secreta. 

A pouco e pouco, havia grupos étnicos que, em geral, encararam, pela primeira vez, a ideia de serem ferreiros ensinados pelos brancos. Estamos em crer que esse medo só foi ultrapassado porque eram os nganga Nzambi, mais propriamente os missionários a ensiná-los. Aos poucos, devem de ter perdido o pavor (mais que medo) de iniciarem a aprendizagem. Tal como em outras profissões modernas (como é o caso de aprenderem a conduzir camiões) tornaram-se ídolos da população, um novo conceito de feiticeiro. 

O processo de fabrico requer a noção de oficina tal como se pode apreciar pela foto tirada ao grupo de ferreiros na oficina da Missão Baptista, cada um com a sua “especialidade”. Os missionários percebiam que os primeiros interessados na arte, para que não lhes fugisse o controle ideológico, seriam os filhos dos próprios ferreiros nativos, com isso conseguiam uma profunda revolução mental na sua educação cultural e mágica através dos novos aprendizes. 
O Ferreiro (1911:258)

Voltando, ao domínio da troca comercial os portugueses, em África, de uma forma geral, dedicavam-se mais à compra de escravos, cera e marfim. As outras potências, mais fortes e com uma superior tecnologia, valorizavam e rentabilizavam muito mais os seus negócios, com unidades transformadoras, como a têxtil e a metalurgia. A Inglaterra levava um avanço abissal face a Portugal, já em 1800 tinha instalado 500 máquinas a vapor embora fosse com a indústria têxtil que se tornou a grande potência mundial transformadora de têxteis. Já em 1788, tinham-se instalado 20.000 Jennys, (máquinas de fiar) para, em breve, se iniciar a estamparia. O avanço da metalurgia era também desmesurado, a aplicação do carvão de pedra ao fabrico de ferro tinha permitido aos ingleses colocarem-se à frente da revolução industrial. Portugal, segundo João Pereira Neto, numa investigação sobre A Família e a Sociedade Portuguesas Perante a Industrialização (1970), diz o seguinte sobre ‘A Primeira Fase de Industrialização’: “ (…) Parece ter tido início há pouco mais de meio século e ter-se processado essencialmente nos sectores da fiação e tecelagem e das conservas de peixe. A insuficiência da indústria transformadora, particularmente no domínio metalomecânico, era suprida através da importação ou da actividade de pequenas oficinas locais cujos mestres tinham uma certa independência económica e que serviam também de centros de formação profissional para jovens aprendizes que, em certos casos pagavam mesmo a sua aprendizagem.(…)”[13] Posto isto, não nos é difícil de entender parte substancial do assunto, que vimos tratando, no entanto, como durante a nossa investigação bibliográfica deparámo-nos com o seguinte documento, com ele pretendemos contribuir ainda, para a análise do assunto em questão:


Primeira folha de anúncio do primeiro-ministro de Sá da Bandeira, em Portugal, para angariar empresa mineiras para Angola. (microfilme do Instituto de Investigação Científica Tropical, do Arquivo Histórico Ultramarino)


Segunda folha do anúncio publicado pelo primeiro-ministro Sá da Bandeira, em Portugal, no ano 1854. (microfilme do Instituto de Investigação Científica Tropical, do Arquivo Histórico Ultramarino)

Apesar deste aperfeiçoamento nas artes dos metais e o seu correspondente domínio comercial como moeda corrente, outros produtos mantinham excelente cotação financeira: as fazendas. Uma das fazendas mais importantes eram os panos, para que se tenha uma ideia do seu multi- secular valor fiduciário, ainda hoje, alguns tecidos, vendidos e preferidos pelas populações da África negra, têm correspondência directa em relação ao dólar americano, quanto fará em relação à moeda oficial da República Democrática do Congo, a moeda Zaire ou a da República Popular de Angola, ou seja, a moeda Kuanza. Referimo-nos aos célebres africa prints, os chamados pintados do Congo ou panos do Congo, que as mulheres do Senegal, da Nigéria, do Zaire, entre outras regiões, ao exibirem os seus kimonos e bubús, pelos melhores hotéis das grandes capitais como pelos mercados rurais, causam o maior fascínio nos homens. Neste contexto do poder dos panos, do seu prestígio e beleza, cabem as colchas e os cobertores ngudikama com que as populações, em vida, preparavam e ainda preparam o enxoval para o enterro dos seus entes queridos; quanto mais colchas e ngudikama, maior prestígio para o morto e para a sua família. Todo este fabuloso monopólio comercial esteve e está na mão de oligopólios judeus, especialmente holandeses, que exportam não só para África, os mesmos tecidos têm o nome de Java prints em todo o Oriente e também lá o monopólio pertence aos ditos judeus. No que se refere aos cobertores ngudikama, eram mantas sobre os tons cinza e azul, ou sobre os castanhos, que serviam para almofadar, o corpo do falecido, antecipadamente embrulhado, por vezes em centenas de metros de pano-crú de algodão. A palavra em si usa o substantivo ngudi que significa mãe e, por sua vez, kama significa o numeral cem, como número infinito, então podemos presumir que a ideia seria a mãe de todos ou a grande conselheira para o envolver aconchegadamente nesta viagem.

Voltemos ao Congo, para lembrar que não foram os portugueses a introduzir no sertão as fazendas, mas sim os povos islamizados ou mesmo os próprios árabes para comprarem escravos. O que os povos navegadores ocidentais fizeram, foi dar continuidade ao mercado já estabelecido tornando-o incomensuravelmente maior e o mercado foi-se expandindo conforme a carga dos barcos negreiros se foi optimizando. Note-se que, segundo Rebelo de Sousa (1967:49), “ (…) As fazendas, inicialmente mais correntes foram a “garrafa”, o “pano” o “cortado”, a “peça” e a “espingarda”. A “garrafa” como a “fazenda”, não seria propriamente a vasilha em si, mas a quantidade de líquido necessária para a encher. Este líquido era, normalmente, uma bebida alcoólica, quase sempre a aguardente. O “pano” seria inicialmente uma porção de tecido grosseiro, de tamanho e finalidades idêntico à mabela, tinha sensivelmente o mesmo valor que a garrafa. O “cortado” era constituído por um determinado número de panos, o suficiente para vestir um indígena, cingindo-lhe com uma parte a cinta e os ombros com outra. A “peça” seria a porção de tecido que o tear dava de cada vez. Media-se em varas. Mais tarde esta medição passou a ser feita em jardas, por efeito da importação de tecidos ingleses (...)”         

                               Mabela simples (salário dos soldados[14]                                   

Mabela rica espécie de coberta[15]

As mabela eram conhecidas, entre os europeus, por panos, sendo de fabricação local, e provenientes alguma delas da palmeira-bordão. As suas varas quase direitas e longas ainda hoje servem para ximbikar (conduzir) as canoas. Nestas circunstâncias, haviam etnias mais ou menos especializadas, mas as populações do Luango e do Congo eram excelentes executores de “ (…) panos, onde os contratadores iam adquiri-los, trazendo-os para Luanda, onde circulavam como mercadoria moeda. Duarte Pacheco Pereira faz menção a este artefacto (…) neste reino do Congo se fazem uns panos de pelo como veludo e deles como lauores como çatim velutado tão formosos que a obra que deles se não faz melhor feita em Itália; e em toda a outra Guiné não há terra em que saibam fazer estes panos senão no reino do Congo...”[16]

Digamos que por fazendas eram tidos todos os artigos que as populações consideravam como património, como a sua riqueza, digamos o seu tesouro particular. Os negociantes que transaccionavam panos com os pumbeiros, funantes e, mais tarde, com os primeiros comerciantes do mato avaliavam estes artigos medindo-os primeiro em varas, o que equivalia a 11 decímetros; por isso, habituámo-nos a conferir medidas de panos, no meio do mato, (à falta do metro) pela distância entre o meio do peito e o final do braço estendido para o lado. Todos, absolutamente todos, sabiam que a medida não era certa, tinha a ver com o comprimento do braço que por sua vez tinha a ver com a estatura do medidor. Esclareçamos melhor, se o comprador estava em altura de exigir aparecia com um medidor alto, logicamente com um braço grande, se o vendedor sentia que a procura era elevada utilizava um seu auxiliar pequeno, logo com um braço curto. 

Entre os kongo o termo lele significa pano, o melhor pano correspondente ao linho branco que, por sua vez, tem um significado simbólico, a linhagem mais antiga em termos genealógicos. Acontece que, o homem mais rico é chamado de Elelo, tal como era chamado o rei do Kongo do último quartel do século XIX, que nós conhecemos da nossa história por D. Pedro V, o rei dos panos. De todos estes artigos de permuta, o de maior aceitação era a fazenda de lei,[17] o pano de algodão da indústria têxtil portuguesa, apelidado de Chita, tecido de algodão estampado, que ainda nos anos 50 do século XX, por via da protecção aos têxteis portugueses, vendia-se, em grande profusão, por todo o interior de Angola. 

Para que os produtos coloniais chegassem às costas de África, uma fantástica panóplia de embarcações, da maior à mais pequena, atravessou os oceanos nas mais precárias condições. 

Fotografia Nº Escaler aproximando-se da margem do pequeno ancoradouro de Matadi (1912) [18]

Temos uma excelente descrição da vida a bordo de um navio cargueiro (embora a acção se passe nos primeiros anos do século XX), com carga destinada ao Kongo sendo os produtos de origem inglesa. O missionário Weeks[19], relata-nos a vida dos mareantes que nele prestavam serviço, do acondicionamento das mercadorias, dos serviçais de descarga, etc. Usa uma forma invulgar de descrição, anima “magicamente” uma vareta de cobre, moeda corrente no Kongo, como se de um ser vivo se tratasse.

“ (…) Sou muito mais velha do que tu pensas pois já lá vão vinte e cinco anos desde que nasci numa grande fábrica de uma das tuas cidades inglesas. Os dias que se passaram desde o meu nascimento têm sido preenchidos com alegria e tristeza, descanso e trabalho; mas ao olhar para trás acho que foram mais os dias de tristeza e trabalho do que de descanso e alegria. Quando nasci era muito alta – quase trinta polegadas de altura mas em vez de crescer mais, fui ficando mais baixa, medindo agora só 11 polegadas, pois os meus inimigos têm-me cortado em pequenos pedaços, uns atrás dos outros, para derreter e fazer ornamentos de cobre. O povo pensa mais em enfeites do que em honestidade.(...)”

O autor, dá-nos uma interessante ideia da forma de negociar naquele tempo e na bacia do Zaire as varetas de bronze. Esse processo não diferiu ao longo de milénios de permuta, da relação entre a oferta e a procura. Pouco há a fazer quando o produto é escasso e como tal muito procurado.

Quanto aos escravos, como moeda-mercadoria, no que se refere a África, o que aconteceu foi a possibilidade de aproveitar uma enorme expansão do tráfego de escravos por via marítima como moeda comercial, destronando os árabes e berberes de irem negociar aos pumbo tão lucrativa mercadoria. O primeiro mercado era muito exigente e conhecedor, ninguém compraria “peças” em tão más condições, sem garantia de sobreviverem, então não será descabido o que atrás dissemos, os de qualidade inferior seriam vendidos aos mercados menos exigentes, e aqueles que para nada prestavam ainda eram vendidos (escondidas as mazelas) por portas e travessas.

Importa salientar que os escravos de mais de quarenta anos de idade (observadas as suas dentaduras por especialistas) eram eliminados, embora aparentassem ainda bastante vigor físico, porém o seu tempo limite de exploração laboral estava excedido para comercialização (estavam digamos, fora de prazo). Segundo Rebelo de Sousa (1967: 35), o valor de um escravo como mercadoria de exportação (aquilo que em termos de alfândega se denomina FOB), escravo posto a bordo, o preço andaria à volta de 22$000 reis [para melhor leitura, 22.000 reis] por peça, o que equivaleria, sensivelmente, a 11.000$00 [onze mil escudos], em meados dos anos sessenta do século XX. Como sobre esta apreciação, são passados cerca de quarenta anos, e tomando como base uma chávena de café que, em 1966, custaria cerca de 1$50, em qualquer pequeno restaurante de Lisboa, sendo hoje o seu preço aproximadamente 0.50€ (cerca de 100$00) então encontraríamos o preço de 3.300€ por escravo à saída de África. Estas macabras apreciações só têm aqui cabimento pela relação que os escravos teriam com as fazendas correntes, a garrafa de aguardente, o pano, a espingarda, a pólvora, os fulminantes, as manilhas de cobre e a querosene.

Conhecendo os costumes bantú, no que se refere às relações sociais, sabemos da paciência que exigem esses mesmos contactos e a exigência dos conhecimentos para entender as relações comerciais, ainda hoje, com os povos do interior de África. Os parâmetros da comunicação não são absolutamente aqueles a que estamos habituados. Nesta trama de relações e lutas de interesses, o pano como moeda corrente começou por ser um tecido grosseiro, sensivelmente do tamanho da já nossa conhecida mabela. Por sua vez, uma série de panos ligados faziam um cortado, o suficiente para vestir um indígena, a peça era a quantidade de tecido que saía, de cada vez, do tear. Para medir os referidos tipos de panos, utilizava-se a vara, porém, com o tempo e pela imposição da comercialização dos tecidos ingleses, passou a utilizar-se a jarda como medida padrão. Uma outra forma de avaliar os tecidos (ainda assim acontecia nos anos sessenta do século XX) “ (…) Para facilitar a avaliação, sem necessidade de recorrer a medições, as peças vinham dobradas de origem segundo dimensões definidas, pelo que era corrente fazer essa avaliação em relação ao número de dobras, critério este da preferência do negociante, por, através do aumento do numero de dobras, poder induzir o comprador a crer que a peça teria dimensão superior à real. Esta especulação, no seu dizer, era feita para «puxar o negócio» (...) As peças de algodão branco tinham em geral 28 jardas de comprimento, havendo ainda algumas de melhor qualidade com 30. Os “zuartes” (peças de algodão azul escuro) e os riscados mediam 18 jardas e os lenços 8 (...)”[20] A desmesurada diferença da tecnologia Inglesa e ainda as suas possibilidades de trato com as suas colónias do oriente, em especial a Índia, tornavam-nos senhores omnipotentes dos mercados Asiático e Africano. O mesmo Rebelo de Sousa dá-nos conta que, no final do século XIX, uma jarda de riscado valia uma galinha e, por um cabrito teriam que se entregar 7 a 10 Jardas, 5 a 8 por uma ovelha, bem como 60 a 70 por um boi

Fotografia do tear rudimentar[21]

Carda para flocos de algodão[22]

Enquanto os artesãos indígenas continuavam produzindo, nos seus rudimentares teares, de há muitos séculos atrás, os europeus apresentavam já as sofisticadas máquinas de cardar de que a gravura acima é um exemplo. E já, em princípios do século XX, alguns industriais portugueses (entre eles Narciso Ferreira de Riba de Ave) obtinham da tecnologia inglesa as mais adiantadas máquinas da indústria têxtil. 

Desta forma, tornaram-se possíveis as condições para um dualismo económico, que da parte das populações era de sobrevivência e quando muito de economia de tráfico, enquanto da parte das potências colonizadoras se procurava instalar as diversas economias monopolizadoras de plantação, tendo sido, para isso, escolhidos os melhores locais e os trabalhadores mais adequados. Estamos a referir-nos, às plantações, por exemplo, de açúcar, do sisal, de algodão, de amendoim e outras oleaginosas, que tantos problemas trouxeram à colonização e descolonização portuguesa. Os quadros que trabalhavam directamente com as populações nestas circunstâncias começaram por ser negros alfabetizados, mestiços, em especial, de origem cabo-verdiana. 

A administração colonial portuguesa de há muito sabia que existiam zonas onde o branco não durava senão meses, em outros patamares do planalto duravam alguns anos, mas poucos conseguiam sobreviver mais de dez anos, isto foi absolutamente comprovado pelo coronel Faria e Maia, no seu relatório apresentado ao Congresso Internacional de Geografia de Amesterdão, em 1938. Nesse congresso, Faria e Maia, experiente militar colonizador teceu convenientes e oportunas considerações que servem para esclarecer quem eram os colonos europeus que iam povoando penosamente Angola; como reagiam ao seu novo habitat e que influências sofreu a sua mentalidade ao contactar isoladamente com a maioria negra, sendo tão-somente um problema vivencial das populações em contacto que merece acima de tudo algum conhecimento das situações vividas. São fenómenos da colonização portuguesa que ainda não foram convenientemente abordados. Quem os conhecia suficientemente bem e ainda sabe abordá-los prefere calar-se, e nós sabemos porquê. A “color line” facilita muitas projecções falaciosas. No momento em que escrevemos este texto estamos esperando que, a vaga da febre de Marburgo, doença endémica da zona do Congo, acalme a sua mortandade para nos podermos deslocar a esses locais. Entretanto, muitos europeus continuam lá, como é o caso dos missionários e pessoal médico e paramédico (ONG’s), constantemente sujeitos a falecer por causa das doenças que ajudam a curar. As feitorias, administradas por capitães-mor que não raro tinham sido funantes mercadores de escravos, iam permitindo o seu lento e possível internamento pelos sertões porque, como se poderá verificar de seguida, estas incursões fortuitas tiveram de enfrentar sempre uma grande resistência pela parte das populações locais. E não se tratava só das resistências das populações locais, eram as doenças para as quais o organismo dos europeus não tinha defesas.
Fotografia Nº Desembarque na feitoria de Noki, frente ao porto de Matadi, fardos de tecidos 

Ao longo de todo o século XVIII e XIX, decaíram as relações a nível monárquico, porém, por volta de 1870, a situação transformou-se em absoluto, o reino do Kongo passou a ser visitado por numerosas comitivas de exploradores, comerciantes e missionários, vindos de todo o mundo ocidental. A ocupação científica e efectiva dos territórios da Bacia Convencional do Zaire, pelos europeus, veio retirar o já precário prestígio e poder aos reis do Kongo. Todavia não nos iludamos, sempre que nestas paragens ocorressem tumultos mais ou menos graves, o ‘espírito dos antepassados Nekongo estava fundamentalmente envolvido, estando nele presentes os primitivos "donos da floresta", ou sejam, os pigmeus, originários habitantes da floresta tropical africana e no presente caso da bacia do rio Zaire, tal como os descreve o Conde de Ficalho: " (...) Seremos pois levados a admitir a existencia duma raça numerosa e antiquíssima, que occupou toda a África tropical e austral, a qual hoje está fraccionada, quase destruida e representada apenas pelos povos que foram rechaçados para a zona arida do Kalahari, e pelas tribus pouco numerosas, que vagueiam entre as populações de raça negra ou se acoitam em densas florestas equatoriaes (...)"[23]

Parte da história antiga e moderna do reino do Kongo encontra-se por fazer. Existem muitos dados inéditos dispersos pelos institutos científicos coloniais da Europa, da América e especialmente do Brasil, que incluem um valiosíssimo espólio fotográfico, de que é exemplo a fotografia que se segue das ruínas dos muros do convento, em São Salvador, construído pelos portugueses no século XVI.

Fotografia Nº Ruínas do convento, em São Salvador construído pelos portugueses século XVI[24]



Notas de Rodapé:

[1] Sousa, L. Rebelo de (1967) Moedas de Angola. Banco de Angola. Luanda, p.16. 
[2] Estermann, Carlos (1983) Etnografia de Angola (sudoeste e centro). Instituto de Investigação Científica e Tropical. Lisboa, pp. 346, 347. 
[3] Sousa, L. Rebelo de (1967) Moedas de Angola. Banco de Angola. Luanda, p. 16. 
[4] Castro A. J.(1880) O Congo em 1845. Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. 2: 56 
[5] Sousa, L. Rebelo de (1967) Moedas de Angola. Banco de Angola. Luanda. 
[6] Garcia, Carlos Alberto (1964) Paulo Dias de Novais e a sua época. Agência Geral do Ultramar. Lisboa. 
[7] Matta, J. D. Cordeiro da (1893) Ensaio de Diccionário Kimbúndu-Portuguez. Casa Editora António Maria Pereira. Lisboa, p. 102. 
[8] Os Dembos nos Anais de Angola e Congo, Revista Militar.10:690. 
[9] Sousa, L. Rebelo de (1967) Moedas de Angola. Banco de Angola. Luanda, p. 25. 
[10] Weeks, Rev. M. John H. (1911) Congo Life and Folklore. The Religious Tract Society. Londres, p. 312. 
[11] Oliveira, José Carlos de (2000) O Comerciante do Mato. Departamento de Antropologia. Universidade de Coimbra. Coimbra, p.45. 
[12] Johnston, Harry (1908) George Grenfell and the Congo. Hutchinson & Co. Londres. 2º Volume, p.794. 
[13] Neto, João Baptista Nunes Pereira (1970) A família e a sociedade Portuguesas perante a Industrialização. Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências. Lisboa, pp.4 e 5 
[14] Sousa, L. Rebelo de (1967) Moedas de Angola. Banco de Angola. Luanda, p. 30. 
[15] Johnston, Harry (1908) George Grenfell and the Congo. Hutchinson & Co. Londres. 2º Volume, p.164. 
[16] Referido por Sousa, L. Rebelo de (1967) As Moedas de Angola. Banco de Angola. Luanda, p. 31. 
[17] Matta, J. D. Cordeiro da (1893) Ensaio de Diccionário Kimbúndu-Portuguez. Casa Editora António Maria Pereira. Lisboa, p. 157. 
[18] Fotografia cedida pelo coronel Diniz Sebastião 
[19] Weeks, Rev. M. John H. (1911) Congo Life and Folklore. The Religious Tract Society. Londres, p. 1. 
[20] Sousa, L. Rebelo de Sousa, Op. Cit., pp. 49 e 50. 
[21] Weeks, Rev. M. John H. (1911) Congo Life and Folklore. The Religious Tract Society. Londres, p. 258. 
[22] Fotografia cedida pelo Museu Ferreiras de Riba de Ave. 
[23] Ficalho, Conde de (1884) Plantas úteis da Africa Portugueza. Imprensa Nacional. Lisboa, p.12. 
[24] Johnston, Harry (1908) George Grenfell and the Congo. Hutchinson & Co. Londres. 1º Volume, p.73.