BOM DIA
Trata-se de uma das expressões que utilizamos quando saudamos alguém. Porêm, na língua Kongo, existe entre outras a expressão: luxikamene que traduzida para português resulta em "Como tens passado?". Esta frase no kikongo idiomático é muito profunda, equivale a dizer "como passaste a noite, como chegaste até aqui, enfim como é que tem sido a tua vida e a dos teus.
ARTIGO EM CONSTRUÇÃO: DIOGO CÃO ERA MAÇON?

5 Do Advento da Civilização Técnica e da Ciência Aplicada à Consequente ‘Situação Colonial’

Sempre que duas sociedades entram em contacto, existe certamente, de ambas as partes, um aperfeiçoamento de que ambas virão a comungar. Todavia, o nosso caso tem a ver com sociedades detentoras de níveis tecnológicos distintos. Este desnível tecnológico acarreta grandes perigos, de vária ordem, para a plena realização deste tipo de contacto de culturas. Cabe aqui citar Neto (1964:18) quando este afirma:



“Os exemplos de contacto em causa nas sociedades modernas mostram-nos que os grupos intervenientes têm, além de desiguais níveis tecnológicos, desiguais expressões demográficas, coincidindo, normalmente, a menor expressão demográfica com o mais aperfeiçoado índice tecnológico.”

No caso das relações seculares entre os zombo e os portugueses, também tal se verificou: os portugueses sempre foram uma minoria detentora de outro tipo civilizacional e de conhecimentos técnicos mais aperfeiçoados que lhes permitiram obter resultados favoráveis aos seus propósitos.

Relativamente ao conceito ’situação colonial’, este deverá ser aqui entendido tal como Coissoró (1957:12/13) o define:
“O fenómeno colonial, hodiernamente, torna-se assim objecto de uma investigação particular, de que a nossa boa doutrina já deu conta quando, abstraindo-se do binómio puramente formal «Metrópole-Império colonial» procura fracturar a realidade colonial – por si polimórfica – alicerçando-se nas estruturas básicas de cada relação colonial, terminologicamente definida por situação colonial.”

No caso da delimitação de fronteiras que tiveram por base a bacia do rio Zaire foi preciso um entendimento científico entre as potências ocupantes (o governo português e o rei Leopoldo da Bélgica) para que se percebesse a quem se deveria atribuir as responsabilidades do território que viesse a ocupar. Para que tal se conseguisse, utilizaram-se métodos geográficos dos quais faz parte a carta geográfica que a seguir reproduzimos. Esta é testemunho primacial do resultado (e a um só tempo, a causa) de uma série de factos histórico-políticos internacionalmente relevantes para o futuro dos zombo e de todas as sociedades presentes neste espaço histórico-geográfico, das quais destacamos a sociedade portuguesa que com eles tem vindo a compartilhar o mesmo espaço geopolítico.

1 – The Sketch Survey of the Portuguese-Congo Boundary, etc., signed by the three comissioners (segundo Johnston 1908: I: 220).

Trata-se de um mapa assinado por comissários autorizados pelos governos português, inglês e belga e diz respeito à localização de pontos geográficos estratégicos para a conclusão da documentação que viria a regulamentar os parâmetros da delimitação de fronteiras entre Angola e o antigo Kongo Belga, hoje República Democrática do Congo. No lado esquerdo do documento, está representada a região do rio Kuango, o vértice da fronteira noroeste de Angola. Em toda a carta são visíveis os traçados dos percursos feitos a pé por exploradores investigadores que, após demoradas visitas aos potentados e baseados nesses passos, viriam a prestar as melhores informações para a definição da delimitação das fronteiras luso-belga. Isto viria a ter um papel profundamente relevante para a Convenção de Berlim de 1884/1885.

Ainda no âmbito do processo de delimitação das já referidas fronteiras, não fazemos ideia de quantos investigadores dedicados a estas questões da antropologia política, social e económica conheceram ou conhecem estas paragens[1]. Nós conhecemos essas gentes e os lugares e sabemos quantos perigos corriam aqueles que se intrometiam nos negócios económicos e políticos do Kiamvo. Por isso, ao compulsarmos a obra já referida sobre George Grenfell sabemos que antes de este se dirigir ao Kiamvo, Mwene Puto Kasongo,consultou o Governador-Geral em Luanda a fim de preparar, no terreno, o percurso da sua viagem de barco até ao Dondo, tal como tinha acontecido trezentos e cinquenta anos atrás com Paulo Dias de Novais. A partir do Dondo, fez o percurso em caravana até se encontrar, ao fim de cerca de oito centenas de quilómetros, com o grande chefe Kiamvo. Algo nos diz que os contornos da viagem foram cuidadosamente preparados por Grenfell e pelo não menos relevante investigador e explorador português Henrique de Carvalho, acompanhado pelo Major Sarmento.

O chefe Kiamvo (ao centro) acompanhado pelos seus maiores, fotografia de Père Butage, 1906 ( Johnston, 1908: I: 195).

Segundo Johnston (1908: I: 199), a expedição foi levada a cabo com protecção militar suficiente. Inteligentemente, tal como sempre, o chefe Kiamvo já devia vir a acompanhar de longe a caravana dos europeus, medindo o seu grau de perigosidade e, portanto,“Fortunately Kiamvo, decided to accept these overtures”. (Johnston 1908: I: 199). A finalidade desta expedição era tão delicada e complexa que os seus responsáveis no terreno resolveram ir acompanhados de duas senhoras: uma, a esposa de George Grenfell; outra, a esposa do Major Cândido Sarmento. Aqui estamos perante outro facto singular: a esposa de Grenfell integra-se perfeitamente no ambiente social local, devido à cor da sua pele e aos profundos conhecimentos sobre os habitantes das terras do Kiamvu. De facto, Mrs. Grenfell acompanhava há já doze anos a maioria dos passos diplomáticos e evangelizadores do marido. O facto de as mulheres acompanharem os seus homens teve e tem um grande significado nestas paragens. Para os habitantes locais, era sinónimo de que estes brancos não vinham ‘raptar’ as mulheres locais sem a autorização do chefe da vata.

Os membros da comissão de delimitação da Lunda[2]

Posto isto, temos muitas dúvidas que, pelo menos nesta situação e no que se refere aos interesses estratégicos, a divisão de África pelas potências ocidentais se tenha traçado ‘a régua e esquadro’. Porventura poderemos esquecer os sacrifícios feitos, ao longo de décadas, por estes homens altamente qualificados (e suas mulheres) em prol de uma cuidadosa ponderação sobre elementos antropo-geográficos relevantes para as resoluções tomadas no âmbito da delimitação de fronteiras a que nós hoje estamos habituados a citar como tendo sido traçadas ‘a régua e esquadro’? Parece-nos que não.

É com as vantagens e desvantagens desta leitura sobre os assuntos referentes à delimitação de fronteiras que identificámos documentos que se relacionam com relatórios do exercício de governadores do distrito do Congo, relatórios de capitães-mores, mais tarde em funções como Residentes, ou administradores de concelho ou de circunscrição. Isto no que respeita ao tempo em que se iniciou a ocupação efectiva, que consideramos ser o espaço de tempo que medeia entre o início do primeiro quartel do século XX e o seu final. Alguns documentos tinham a classificação oficial de secretos e até eram cifrados. Agora desclassificados, podem ser consultados. Exibem ainda a chancela do Governo Geral ou do Governo de Distrito bem como de batalhões operacionais que a partir de Junho de 1961 fizeram a reabilitação dos eixos viários da Damba até S. Salvador do Kongo, passando por Maquela do Zombo.

O teatro de operações da ocupação efectiva criava as maiores dificuldades às forças militares portuguesas. A este propósito, lembramos um factor importantíssimo e que só ficou aparentemente resolvido a partir de 1961: o fardamento pesado e inadequado, as pesadas botas dos militares portugueses e o penoso arrastar das peças de artilharia que denunciavam, ao longe, a sua aproximação.

Passagem da artilharia numa ravina, fotografia de Veloso e Castro, 1908.

A observação das sociedades em presença leva-nos a defender que o motor do advento dos portugueses, como minoria dominante da história do Kongo ao Kunene desde o último quartel do século XIX ao princípio do último quartel do século XX, foi caracterizado por desníveis de tecnologia, em especial pela invenção e operacionalidade da mais mortífera arma de guerra de então: a metralhadora[3]. Acrescente-se ainda o sistema de comunicação morse, que abalou profundamente a supremacia e eficácia da comunicação Kongo (em geral pelo tambor e estafetas) e a fotografia, enquanto nova fonte de informação militar.


Descanso da coluna de 1914 , fotografia de Veloso e Castro, 1914.

No início do século XX, a Sociedade de Geografia de Lisboa pretendia inculcar, na política colonial portuguesa, uma maior racionalidade e até cientificidade que pudesse assegurar e salvaguardar os interesses nacionais nas colónias, tal como Ângela Guimarães (1984: 226) afirma:

Uma administração cientificamente organizada, dirigida por funcionários de elevado nível cultural e participada pela adesão de determinadas camadas da população africana chamadas a um nível superior. Os restantes elementos das populações dominadas, depois de afeiçoados à propriedade e ao trabalho livre deveriam tornar-se competentes produtores e consumidores prevendo-se uma estratificação com uma elevada média de técnicos auxiliares e uma vasta população de trabalhadores braçais. Uma exploração económica de tipo moderno, tendo por base a realização de infra-estruturas necessárias [...] Defendia intransigentemente a integridade de todo o território nacional e o controlo pelo Estado de todas as grandes empresas e empreendimentos.

De um lado, estavam os colonizadores imigrantes, mais ou menos integrados na civilização da técnica e da ciência aplicada, dominados pela economia monetária e largamente dependentes dos investimentos exteriores. Estes tentavam mobilizar os recursos locais para a construção de infra-estruturas inexistentes e para colectar ou produzir não só os produtos para exportação, mas também aqueles destinados ao incipiente mercado interno. Do outro lado, estavam os kongo, divididos em subgrupos com estruturas políticas de tipo tradicional e organizados predominantemente para a auto-suficiência. Os seus membros utilizavam técnicas agro-pecuárias meramente empíricas, baseadas sobretudo no esforço físico humano. A colecta e a produção destinavam-se, na sua quase totalidade, ao consumo, num tipo de economia classificada de ’subsistência’.

A organização social dos kongo não favorecia a diferenciação, já que o lugar e a função que o indivíduo ocupava na comunidade eram geralmente determinados pelo nascimento e pela tradição[4]. O desenvolvimento geral das comunidades tradicionais enfrentava obstáculos não só de cariz económico, social e político, mas também mágico-religiosos. Graças à magia e aos rituais, fórmulas, amuletos e talismãs procurava levar-se as forças sobrenaturais a agir em determinado sentido. Isto verificava-se, sobretudo, no caso da guerra. O facto do indivíduo se habituar a tudo e de esperar pela eficácia da prece, da súplica, do objecto mágico ou do capricho dos espíritos dos antepassados adormecia o seu sentido crítico e constituía causa de estagnação intelectual.
Época da delimitação de fronteiras no rio Kuango, fotografia de Veloso e Castro, 1913.
Antes da remodelação radical introduzida nos métodos de ocupação do Congo e iniciada em 1911-1912, a tolerância relativamente à intromissão portuguesa nos negócios da região era conquistada através de presentes, de aguardente e de transigências de toda a espécie face à real autoridade exercida pelos potentados locais. Contudo, e face à nova situação introduzida por essa mesma remodelação dos métodos de ocupação, a colonização portuguesa em Angola vinha agora opor-se à tolerância do indígena para com a autoridade portuguesa. Porém, a carência de efectivos humanos para exercer essa mesma autoridade e para concretizar a ocupação efectiva é assim apreciada por António Jorge Dias (1957: 71):

"Infelizmente a falta de gente mantinha-se, porque a emigração para o Brasil continuava e continua ainda hoje a levar-nos uma grande parte dos nossos excedentes demográficos metropolitanos. Só casos excepcionais, como a colonização de Moçamedes feita por elementos portugueses repatriados de Pernambuco contrariam a regra. A nossa ocupação em África pode dizer-se que era só costeira, pois as explorações levadas a cabo por alguns exploradores não tiveram repercussão nenhuma. A supressão das ordens religiosas, que se seguiu à revolução de 1820, impediu que as missões continuassem a exercer a sua acção civilizadora [...] Pode dizer-se que a exploração sistemática dos territórios africanos do interior, sob o ponto de vista agrícola e comercial, só começou a fazer-se a partir do fim da 1ª Grande Guerra. [...] Em Angola, a ocupação tem-se feito aos arrancos segundo a iniciativa dos governos. Algumas dessas tentativas falharam em parte, por falta de estudo, como foi a fixação dos madeirenses agricultores na Huila, sem terem mercados que lhes comprassem a produção. Esta população acabou por se degradar social e economicamente e hoje ocupa um status social semelhante ao do indígena. Outras foram bem sucedidas e serviram de estímulo a novas tentativas."

Este conjunto de situações adversas aos intentos da administração colonial portuguesa justificava-se por uma conjuntura, especialmente de ordem geopolítica internacional, nomeadamente a questão do Mapa Cor-de-Rosa e da "Batalha do Congo" (a luta entre as grandes potências pela ocupação da Bacia Convencional do rio Zaire ou Kongo)[5]. Para além do mais, toda a situação nos remete para o principal acontecimento político do primeiro quartel do século XX: a Primeira Guerra Mundial. Nesta altura, Portugal, um país pequeno e essencialmente agrícola, foi confrontado, nas suas colónias, com uma situação profundamente adversa a que não eram alheias mudanças constantes de ministros do ultramar (mais de cinquenta ministros foram entretanto nomeados). Armando Cortesão dirigia a Agência Geral das Colónias, quando pronunciou, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1925 o discurso O Problema Colonial Português, do qual Pierre Daye (1929:60) destaca " (...) cette interrogation effarante: «Comment peut-on admettre qu'un pays de l'importance coloniale du nôtre ait vu se succéder, en quatorze ans, cinquante et un ministres des colonies?»". Não nos admiremos pois da constante mudança de Governadores-gerais em Angola.

É neste oceano nebuloso que a nova administração colonial tenta navegar. Os seus denodados esforços esbarravam com profundos entraves, nomeadamente as mudanças ministeriais que implicavam a política das colónias e obrigavam a uma constante rotação de Governadores-Gerais. Citamos, de seguida, alguns dos factos enumerados por Roberto Correia (2000 e 2001) relacionados com os kongo e que, naturalmente, afectavam os zombo.

Governadores-gerais de Angola no período de 1909/1915

No governo de José Augusto Alves Roçadas (de 16/12/1909 a 26/10/1910)

"Agosto - Povos de Mandimba, Canda e Mateca invadem S. Salvador do Congo para exigirem ao Residente (administrador), Antunes dos Santos, o não pagamento do imposto, como estava acontecendo com outros povos." (2000: 392)

"Dezembro - 31 - O total da população de Angola seria de: 12.000 brancos, 9.500 mestiços e mulatos e cerca de 3 milhões de negros (e outras raças). [...] Na área de S. Salvador do Kongo havia apenas 100 europeus. O Distrito da Huila, por sua vez, tinha então mais de 3 mil brancos." (2000: 397)
No governo de Manuel Maria Coelho (de 18/1/1911 a 26/2/1912)

"Maio/Junho Os Zombo entram em conflito com os soldados da guarnição. Faria Leal e, depois o governador de distrito, José da Silva Cardoso, concentram as forças em Maquela do Zombo. Estava em jogo, além do problema da cobrança do "imposto de cubata", a distribuição das zonas de aliciamento dos carregadores. Para tal, decidem fazer uma ocupação militar de alguns pontos-chave: em Kibokolo, Bembe, Madimba e Damba, os quais foram protegidos por forças militares e fortins. Houve um entendimento com as populações, não sendo necessário entrarem em lutas. Com issonormalizara-se o comércio e os deslocamentos das caravanas, havendo mesmo certos progressos. Algumas povoações, então designadas "residências", passaram a ter uma influência e utilidade mais efectiva. Todavia, por outro lado, aumentavam os contrabandos de armas e munições, em trocas com borracha, que por sua vez também começara a vir de contrabando do Congo Belga! Mas, no meio de tudo isso, uns e outros iam praticando o tráfico de escravos, às vezes sob a capa de "contratados" e muitos com a colaboração e conivência de algumas autoridades portuguesas e dos seus auxiliares nativos, manobrados por comerciantes e "especialistas do ramo", pois todos "comiam" uma certa percentagem desse bolo, por cada cabeça comercializada!" (2000: 404)

"Julho - 1 - Kiditu foi "empossado" e não coroado, tendo o apoio de Álvaro Buta." (2000: 405)
No governo de Manuel Moreira da Fonseca (de 26/2/1912 a 07/03/1912)

"Fevereiro - 26 - Encarregado do governo. Foi capitão-mor do Bailundo em 1903. Março - Demissão do Governador-geral, Coronel Manuel Maria Coelhopor ser opor ao trabalho forçado e por ter expulso diversos transgressores." (2000: 411)
No governo de António Eduardo Romeiras de Macedo (de 07/03/1912 a 17/6/1912)

"Março - 19 - O ministro inglês propõe o adiamento da chegada da Comissão luso-inglesa para se juntar à luso-belga, na demarcação das fronteiras de Angola.


Abril - 11 - Circular nº19-J, do governo geral aos governadores de distrito, pelo Chefe do Estado Maior, major Manuel de Oliveira Gomes da Costa, para que a penetração pelo interior se fizesse pelas linhas comerciais, as quais seriam fortificadas com postos militares.


Abril - 26 - O Ministro dos Negócios Estrangeiros comunica ao governo inglês a forma e as condições da Missão de demarcação das fronteiras de Angola." (2000: 412)

José Mendes Ribeiro Norton de Matos (de 17/06/1912 a 03/1915)

"1913 - Fevereiro - Afonso XIII, rei de Espanha, avisa o governo português que ocuparia o seu território no caso da Alemanha e a Inglaterra, partilharem as colónias portuguesas." (2001: 21)

"1913 - Setembro - 16 - Decreto sobre o Trabalho Indígena. Setembro - Tropas portuguesas avançam para o Pombo e o Sosso, mas encontram bastante resistências da parte dos Bakongo, o que não esperavam, tendo sido morto o capitão Praça. Foi o início da grande revolta do Congo, onde se verificava uma enorme anarquia política-militar." (2001: 25)

"1913 - Outubro - Verifica-se uma mais acentuada procura de trabalhadores em Cabinda, com destino às fazendas de S. Tomé. Em consequência disso cria-se um certo vazio nessa região, o qual foi tentado suprir com trabalhadores do Congo (zona sul), ou indo mesmo estes directos para S. Tomé. Em seguimento dessa solução, o próprio chefe do posto, Paulo Moreira, sucessor de Faria Leal, manobrou bastantes sobas da região para fornecerem umas largas centenas de trabalhadores, num total de 1.500, para seguirem sob contrato para aquela ilha. Todavia não teve grande apoio, conseguindo apenas convencer alguns voluntários por se tratar de trabalho remunerado. Esse fracasso foi devido em parte à influência da Missão Protestante instalada naquela região." (2001: 26)

"1913 - Novembro - 22 - O soba dissidente, Álvaro Buta, que havia sido afastado das suas funções, protesta contra o facto do chefe (D. Manuel Kiditu), ter sido subornado nessa transacção dos trabalhadores, pelo que devia anulá-la, devolvendo o dinheiro já recebido." (2001: 27)

"1913 - Dezembro - 11 - Buta, reforçado, entra em S. Salvador para manifestar o seu desagrado, sendo ouvido por todos os europeus ali residentes. Foi seu intérprete o catequista Miguel Nekaka. Exigiu a demissão de D. Manuel Kiditu e a cessação do contrato dos trabalhadores para Cabinda e S. Tomé.


1913 - Dezembro - 12 - O "chamado rei" não se fez esperar; despiu as vestes reais e refugiou-se no Congo Belga, para desagrado dos portugueses, mas com certa conivência do chefe Moreira." (2001: 28)"

1914 - Janeiro - Anulados os recrutamentos para S. Tomé, Norton de Matos segue para Quifuma. O chefe Moreira, revoltado e desagradado, manda prender diversos ex-colaboradores. Seguem algumas forças de Maquela do Zombo e instalam-se na fortaleza com a população. Norton demite o chefe Moreira.


1914 - Janeiro - 25 - Início dos ataques efectuados por Buta e seus apoiantes.


1914 - Janeiro -Chegam reforços de Maquela do Zombo." (2001: 30)

Durante o ano, existiam épocas favoráveis e desfavoráveis para a luta que se travava entre o chefe Buta e as autoridades portuguesas. Para aquele, era importante que o capim estivesse muito alto para poder aproximar-se das tropas portuguesas sem que estas dessem por isso. O mês em que tal se verifica é normalmente o mês de Janeiro. Assim, e para além do capim estar muito alto, era uma altura de intensas chuvas que impediam os portugueses de progredir no terreno, dada a sua logística e tipo de material utilizado na campanha. Por isso, se compreende que os militares portugueses se apressassem a resolver a contenda durante a época da ausência das chuvas (o chamado cacimbo dos meses de Maio a Agosto) época em que se fazem as grandes queimadas na savana e, durante a qual, se podia vislumbrar de muito longe qualquer movimento suspeito. Como se pode verificar pela fotografia que a seguir reproduzimos, o capim ainda está a crescer, pelo que facilmente se podia ver ao longe o resto da coluna militar (que podia bem ser uma caravana mercantil).


Coluna deslocada de Maquela do Zombo em socorro de S. Salvador, fotografia de Veloso e Castro, 1914.
A logística, enquanto grande problema militar no norte de Angola, não constituía problema algum nesta altura do ano. No caso de haver deserções de carregadores, estas só poderiam dar-se durante a noite. O perigo de um ataque era também muito remoto. Os ‘rebeldes’ kongo não se expunham. Eram demasiado conhecedores dos riscos que corriam para tentarem qualquer investida. Esperariam pelo nevoeiro cerrado da manhã, que se verifica todos os dias nesta altura do ano. Por outro lado, tinham conhecimento de que, na coluna, vinha uma nova arma dizimadora de homens: a metralhadora. Os seus informadores eram as populações das vata e como estas eram carregadores na coluna, mantinham-nos a par de todos os movimentos.

De acordo com Roberto Correia (2001:32)

Trincheiras abertas pelos rebeldes do chefe Buta, fotografia de Veloso e Castro, 1914.
De acordo com Roberto Correia (2001:32), durante o governo de António Nogueira Mimoso Guerra (de 31/03/1914 a 02/09/1914), em “Abril - Buta continua na região de Maquela, tentando lançar todos na revolta contra os portugueses. Foi novamente derrotado, sendo incendiadas as aldeias dos zombo.” De facto, e logo em fins de Abril, o capim está pronto a arder. O terreno fica completamente raso, só vingando os arbustos mais fortes e mesmo esses ficam quase reduzidos a cinzas. Consequentemente, todas as vantagens que a época do ano oferecia às intenções bélicas de Buta se esvaiam. Por isso se dá a notícia de que em “Agosto – 13 – Buta foi vencido em MBanza-a-Kongo, conseguindo escapar-se mais uma vez.” (Correia 2001:34).

O novo Governador-geral, José Mendes Ribeiro Norton de Matos (de 02/09/1914 a 08/03/1915), não podia esperar mais tempo. As tropas estavam exauridas, com muitos homens fora de acção, não tanto pelas perdas de vidas humanas causadas pelo inimigo, mas, acima de tudo, pelas febres, sendo que a malária era a principal causadora de tanto sofrimento. É então que em “Setembro – ao norte de S. Salvador do Congo os chefes locais estavam dispostos a negociar a paz.” (Correia 2001:35).

Na posse dos dados supracitados, já poderemos compreender as dificuldades por que passaram as autoridades portuguesas no seu avanço pela tomada de posições no norte de Angola. De facto, e conforme relatório do Chefe do Estado-Maior em Cabinda, datado de 18 de Setembro de 1914:

“Uma campanha em África, mais que em qualquer outra parte, e no Congo mais do quer em qualquer outro districto, em razão da sua topografia que exclue qualquer meio de transporte que não seja o carregador, exige um intenso e demorado trabalho de preparação; ora nas operações realizadas no Congo em 1914 não houve preparação alguma.”[6]

Para os Kongo estava em causa um sistema de sobrevivência agrícola que não deixava recursos de alimentação para o ano seguinte, o que os obrigava a fazer a guerra sempre que tivessem as colheitas dos produtos de que se alimentavam já feitas. Não causará então estranheza que os zombo soubessem, do ponto de vista da sobrevivência das populações, quando o tempo lhes era favorável para fazer a guerra ou a paz. Era o seu modo de vida secular que estava em causa. Os zombo sabiam negociar a paz e fazer a guerra como poucos. Para eles a paz sempre foi tão importante como a guerra, desde que, com cada uma delas, pudessem ir fazendo a sua inveterada vida comercial ambulante. Viviam os dois extremos com a mesma forma astuta de ultrapassar todo e qualquer obstáculo, demorassem o tempo que demorassem a contorná-lo. Em última instância, partiam para a guerra não como um fim, mas como um meio para conseguir utilizar as suas nzil’a bazombo, ou melhor, os seus velhos itinerários mercantis.

Conhecendo o governo português esta forma de estar dos zombo (enquanto povo raiano), utilizava, conforme a situação das populações, diferentes métodos para atingir o mesmo fim: a ocupação efectiva. Prova disso é o seguinte trecho que encontrámos numa circular do governo do distrito:

“Neste caso nem sempre o imposto nos dará a justa medida da submissão – Depois dá-se também o caso de em um dado momento não ser propriamente a cobrança do imposto de cubata o objectivo imediato dos problemas de ocupação os quais na realidade e na maioria dos casos, sempre, digo, na maioria dos casos, assumem sempre um aspecto geral que exige uma bem meditada sequência de medidas administrativas [...] No distrito do Congo, ainda estamos nas circunstâncias que tornam necessário proceder-se na ocupação como este governo refere na página 22 do seu relatório de 20 Fevereiro de 1911, isto é: realizá-la pelas linhas de menor resistência até à fronteira.” [7]

Embora, em termos teóricos, o problema da divisão de fronteiras geográficas e dos povos que habitavam a região parecesse resolvido, as autoridades portuguesas confrontavam-se com problemas decorrentes da aplicação prática dos decisões operacionais que viessem, efectivamente, concretizar a estabilização das populações. Neste sentido, consideremos a seguinte citação, da mesma circular do governo de distrito (o sublinhado é de nossa autoria):

“O problema de ocupação ao longo da fronteira, se é certo que não oferece um aspecto de contingência internacional, porque está feita a delimitação, tem todavia uma importância capital, porque evita o deslocamento dos povos, principalmente dos arraianos tão frequente ao longo da fronteira Luso-Belga em ambas as citadas regiões e evita ainda um outro facto não menos importante, a saída pelos portos belgas dos géneros coloniais produzidos em território nosso, sem deixarem à nossa bandeira, quer sob a forma de lucro para o comércio particular, quer sob a forma de regime aduaneiro para o Estado“.[8]

Os zombo tinham encontrado uma nova forma, muito mais rentável e menos cansativa, de ganhar a vida. Infelizmente, para eles, seria por pouco tempo. A nova oportunidade, para os zombo, de independência comercial só surgiu em 1975 quando tomaram posse de vez das casas comerciais dos portugueses. Anteriormente, para sobreviverem à ocupação dos comerciantes portugueses enquanto principais agentes da ‘bandeira portuguesa’ na fronteira noroeste de Angola, desceram à categoria de vendedores ambulantes e comissionistas (os célebres minkiti conhecidos no Zombo por kankitas) integrando-se e ’subordinando-se’ de modo exemplar à ocupação portuguesa. E de tal forma desempenharam os serviços de que eram encarregados, que os melhores colaboradores eram altamente disputados e relativamente bem pagos, dada a sua influência sobre os povos muxikongo, sossos, pombos e yakas, o que muito ajudaria os portugueses a estabelecerem a capitania-mor do Kuango.

Porém, uma ocupação é sempre vista, por quem é ocupado, como uma forma de violência. Os menos avisados reagem de imediato e, por esse motivo, pagam com a vida a sua rebeldia. Outros, como foi sempre o proverbial caso dos zombo, tornam latente o seu orgulho de independência (no sentido de liderarem a sua vida sem obstáculos). Submergiam e submergem ainda, esperando com a maior paciência, sempre acautelados pelos seus ’sábios’, a melhor ocasião para emergir adequadamente. Esse adequadamente era visível quando, por exemplo, traziam hasteada, à frente da caravana, a bandeira que permitia que fossem reconhecidos ao longe, indicando o povo a que pertenciam.[9] Se antes não faziam ideia do propósito de qualquer comitiva trazer hasteado um ‘pano’, não lhes foi difícil relacionar esse mesmo ‘pano’ com as pessoas que integravam a caravana e avaliar se lhes interessava ou não contactar com eles. Esta noção foi-lhes incutida pela forma como as comitivas portuguesas, francesas, belgas e inglesas se apresentavam perante eles, também com a bandeira hasteada. Tal pode ser observado na fotografia que se segue.



A kibuka, ou caravana em marcha, fotografia de Veloso e Castro, 1913.

Esta qualidade, inerente a todos os povos, de se libertarem do jugo de estranhos parecendo que se submetem ao domínio daqueles que deles se tentam aproveitar, está bem patente no artigo no Diário de Notícias assinado pelo governador do distrito do Congo, José da Silva Cardoso:

“Em todos os casos o objectivo real da rebelião é sempre o forte desejo que o preto tem de sacudir o jugo do branco, ao qual se submete aparentemente, respeitando a sua força, e admirando o seu engenho, mas detestando o seu ascendente.”[10]

Os sucessivos aumentos das taxas de imposto de cubata, que incidiam sobre os povos da área, iam criando as condições favoráveis ao início da rebelião a que se adicionavam as exigências da prestação de serviços dos carregadores não remunerados pela administração colonial. O insucesso das operações tentadas em 1913, que resultou na morte do capitão Praça, deu aos rebeldes a ideia real da forma como podiam e sabiam fazer frente às forças de que dispunha o exército português.

Encontramos aqui condições relevantes que propiciaram a actuação guerreira do grande chefe Álvaro Tulante Buta. Este ainda não tinha perdido as esperanças de chegar a Ntotila,até porque, e acima de tudo, a sua linhagem uterina lho permitia. Mais uma razão para que movesse a guerra aos portugueses e conseguisse concretizar o seu desejo. Ele acreditava que, uma vez derrotados os portugueses, conseguiria a reunificação do antigo reino do Kongo. Assim pensaram os primeiros dirigentes da UPNA nos finais dos anos cinquenta do século passado.

Os hábitos adquiridos com a transigência das autoridades de S. Salvador (depois Maquela do Zombo, Damba e Bembe, para nos reportarmos à zona de influência dos chefes zombo) para com as missões inglesas sedeadas no então Congo Português facilitaram o crescente ascendente das mesmas sobre os povos da sua zona. A esfera de acção da companhia inglesa Cadbury, transformadora dos produtos do cacau, tinha, no entender do autor do manuscrito em nosso poder,[11] como responsável pela angariação de mão-de-obra indígena o missionário inglês Bowskill[12]. Acrescenta ainda o mesmo documento:



 J.S. Bowskill.
“As manobras da Cadbury na sua campanha pseudo-anti-esclavagista, estendendo-se ao Congo Português onde tinha por agente o missionário inglês Bowskill. Director da British Baptist Missionary Society, explorando o recrutamento de mão-de-obra para S. Tomé e para as fazendas do enclave”.[13]Este mesmo assunto é referido em pormenor por René Pelissier (1986: 312), que a determinado momento confirma o que vimos dizendo:

“O novo administrador de S. Salvador, o Capitão Martinho José de Sousa Monteiro, que realizara havia pouco a junção Noqui – S. Salvador, não era, decididamente, defensor dos protestantes, em especial do Rev. Bowskill, que parece não ter sido tão inocente como dizia e que, libertado mas vigiado, ficou em S. Salvador até ao Outono de 1914.”.

Pelo que temos deixado transparecer, a posição, até mesmo pessoal, do Capitão José de Sousa Monteiro relativamente a Bowskill era de total desconfiança. No entanto, Bowskill era um missionário da inteira confiança de Faria Leal, administrador de S. Salvador, e que o capitão José de Sousa Monteiro veio substituir. Segundo este, o missionário era muito respeitado por todos e, em especial, pela parte da família do Ntotila, que tinha optado pela religião cristã baptista. Estas circunstâncias revelam, de certo modo, os diferentes interesses que envolvem sempre os representantes económicos, políticos e religiosos. Foi, é e será um tema de difícil tratamento e análise.

Como última referência à estratégia comum a todos os interessados no domínio da região, não é de mais repetir citações que apontem para a importância das vias de comunicação e do seu domínio. Neste sentido, citamos novamente a circular do governador de distrito José da Silva Cardoso:

“Em Maio de 1911 a região do Zombo pretendia impor-se à nossa autoridade [...] Esta última sublevação forçou-nos a ir ao Zombo [...] Reconhecendo que a Damba se servia do caminho do Bembe para as suas relações com Maquela, procuramos assenhorar-nos desses caminhos [...] É necessário policiar os caminhos para activar as marchas das caravanas.”[14]

Numa última referência a Buta, citamos o mesmo governador de distrito porque a lição das enormes dificuldades colocadas por Buta ao domínio político e territorial dos portugueses não serviu às chefias militares da Zona Intervenção Norte a partir de 1961, e no nosso entender até finais de 1965:

“Note-se de passagem a simultaneidade d’estes ataques: adeante veremos que proximamente na mesma época era atacado o posto da Damba e em face d´isto não háverá quem ouse contestar que todos estes ataques obedeciam a um bem elaborado plano, que levando-nos a dividir as poucas forças de que poderíamos dispor, nos conduzia à fraqueza em toda a parte e que, se não nos colocasse em risco de sermos batidos e aniquilados, nos crearia, pelo menos graves dificuldades em subjugação da revolta. Não havia dúvida de que um tal projecto abona a capacidade táctica e estratégia do autor, que ainda reservava para si a vantagem de manobrar pelas linhas interiores, como parece provado que o fez; e, em face disto, a admitirmos que um tal projecto foi elaborado por Buta, estensivo chefe de guerra, absolutamente analfabeto, teremos que curvar-nos reverentes em face deste génio, só igualado pelo que os seus subordinados manifestaram na arte da fortificação.”[15]

O documento que a seguir apresentamos é um esboço topográfico da estrada de Noki a Maquela do Zombo e deixa uma reflexão: poderemos nós agora imaginar o que foi a luta pela abertura das vias de comunicação em Angola a partir de meados de 1915 a 1930?

Esboço da região marcando os dois traçados entre Noki e Maquela assinado por Luís de Sá PereiraFonte: Inspecção dos Serviços de Agricultura, 1915. Escala aproximada: 1:2.000.000.

Quanto teria custado, em termos de impopularidade, a obrigatoriedade de parte de população válida ter de trabalhar, sem salário, na desmatação e derrube das árvores? Enfim, no nivelamento das estradas, sem esquecer a confiscação de terras aráveis por onde viriam a passar essas mesmas estradas? Deixamos a este respeito uma nota retirada do mesmo documento do esboço e que se refere à estrada de Noki a Maquela do Zombo:

“Estrada esta já construída entre Noqui e a ribeira Mavoura na extensão de 15 quilómetros. Isto não é nada para a extensão total dela que anda por 300 quilómetros (e não 202 como erradamente se fez supor [...] Não segue ele o traçado já esboçado pelo pessoal das Obras Públicas e mais ou menos seguido pelas comitivas entre Noqui e o rio Kenguel [...] Em todo o caso não se pode afirmar, sem um estudo prévio, que o actual caminho possa ser aproveitado por uma estrada regular”.[16]

Este traçar do futuro começaria a trazer uma grande instabilidade à organização social tradicional dos zombo, habituada que estava, desde há séculos, a exercer a sua vida económica através de trocas, impondo com as razões do seu poder, que muito bem sabiam equacionar, o domínio comercial de grande parte do baixo Congo. Os panos foram sendo substituídos ‘lentamente’ por moeda, tanto portuguesa como belga, adquirida através do trabalho compelido em Angola ou com o ganho na emigração zombo para o Congo ex-Belga, a que não era estranha a necessidade de mão-de-obra sentida pelos belgas, especialmente nas explorações mineiras e na construção dos caminhos-de-ferro. No caminho-de-ferro de Matadi, era comum o uso da inequívoca expressão kikongo Bula Matadi para designar o caminho feito só a ‘partir pedra’. Esta expressão tem a ver com a forma das populações da zona compreenderem como forma de desobstruírem o caminho fazendo explodir pedras por vezes com centenas de toneladas de peso recorrendo ao uso da dinamite. Este tipo de tecnologia utilizado na construção de uma via-férrea era completamente inacessível à capacidade financeira do estado português, embora este reconhecesse como era imperiosa a instalação da via-férrea para o desenvolvimento do domínio português em Angola. A introdução do salário no trabalho obrigatório começava a ser defendida com grande firmeza, embora também com grande prudência pela administração colonial. Sobre esta problemática, Sampayo e Mello (1910: 333) lembra:

” (…) Mgr. Angouard, bispo do alto Congo Francêz ainda há poucos mezes, num livro sobre o Congo, defendia o trabalho obrigatório para os pretos e sustentava que ele deve ser mantido com grande firmeza, embora com grande prudência, acrescentando que a exploração do trabalho indígena em África longe de poder-se classificar de escravatura, representava um bem estar social bem mais favorável do que os brancos da metrópole, verdadeiros escravos sob o jugo dos impostos, do serviço militar, e das rudes exigências do trabalho rural.”

Contudo, a aplicação do pagamento em dinheiro por serviços prestados custou aos orgulhosos e omnipotentes zombo a gradual adaptação a tarefas que normalmente não aceitariam, pela sua vinculação aos seus seculares costumes tradicionais e, por consequência, mais dificuldade tiveram em se adaptar às novas regras mercantis dos portugueses. Foi necessário ainda que a ocupação efectiva desse lugar, de uma forma gradual, ao cimentar da colonização branca e que tomasse efectivamente a forma peculiar da autoridade militar, que se traduz por inequívoca obediência, seguida de perto pela administrativa para que os zombo se aquietassem.

Parte do dinheiro auferido pelos zombo na construção de estradas e vias-férreas do Congo ex-Belga viria a ser aplicado no pagamento do alembamento da primeira e talvez única mulher[17]. Pela primeira vez, alguns jovens zombo, que normalmente tinham dificuldades em conseguir das suas patrilinhagens o pagamento da compensação nupcial, estavam agora em condições, através do salário auferido com o trabalho na nova economia monetária, de satisfazer as exigências das matrilinhagens da noiva. Porém, a adaptação aos novos critérios de vida e o ‘esquecer’ das obrigações sociais para com os seus maiores precisava de tempo, tanto tempo que ainda hoje essa adaptação se está a processar.



[1] Mesmo agora, nos tempos que vão correndo, e por causa da corrida aos diamantes principalmente entre zombos, mayaca, ou yacas, cokwes, hutos e tutsis (todos eles experimentados garimpeiros) o conhecimento que detém sobre este delicado assunto torna-se uma ‘carta de chamada para a morte’.
[2] De pé da esquerda para a direita: o capitão comandante Gorin, major Cândido Sarmento, major Henrique de Carvalho e segundo tenente Sarmento; sentados Mrs Grenfell, George Grenfell e a esposa do major Sarmento. Fotografia de Grenfell,1892, (segundo Johnston 1908 tomo 1 ilustração210)
[3] Esta arma viria a ser também fundamental no longínquo teatro da Primeira Grande Guerra do século XX.
[4] Os grandes caçadores são a excepção, na medida em que estes não dependiam, para a aprendizagem da sua profissão, da sua família biológica.
[5] Sobre este assunto, consideremos José D’Arruella (1940) e a sua obra A Tragédia Nacional, Estudo Sobre as Relações Diplomáticas e Políticas da Alemanha com Portugal dos Séculos XIX a 1914. Este autor, advogado e antigo director da Voz do Direito insere no livro citado factos respeitantes ao Congo e, por consequência, aos Zombo. Embora escreva de forma por vezes exacerbada (vivida na época entre monárquicos e republicanos), vale a pena recordar os factos históricos mencionados no livro, no que se refere à Batalha do Congo.
[6] CARDOSO, José Manuel da Silva [Governador do Distrito do Congo]. 1914. 2ª Divisão, 2ª Secção, Caixa Nº21, Nº15.
[7] Circular Nº134, 23 de Abril de 1912, referência à nota circular Nº133 de 01/04/1912 e que existe no Arquivo Histórico Militar, 2ª Divisão, 2ª Secção, Caixa Nº21, Nº15, 1914.
[8] Ibidem.
[9] Este assunto pode ser consultado em pormenor em Oliveira, José Carlos (2004) O Comerciante do Mato – o comércio no interior de Angola e Congo. Centro de Estudos Africanos – Departamento de Antropologia – Universidade de Coimbra. Coimbra
[10] CARDOSO, José da Silva (1914) A revolta do Congo e as suas causas. Diário de Notícias, VIII: 13
[11] (1914) Manuscrito encontrado no Arquivo Histórico Militar, na 2ª divisão, 2ªsecção, caixa 21, Nº15
[12] J.S. Bowskill, missionário da confiança de Faria Leal. Segundo este, o missionário era muito respeitado por todos e, em especial, pela parte da família do Ntotila, que tinha optado pela religião cristã baptista.
[13] Manuscrito encontrado no Arquivo histórico, militar na 2ª divisão, 2ª secção, caixa 21, Nº15, 1914.
[14] CARDOSO, José Manuel da Silva [Governador do Distrito do Congo]. 1914. 2ª Divisão, 2ª Secção, Caixa Nº21, Nº15.
[15] Ibidem
[16] Idem pp. 101 e 102, Fonte: Inspecção dos Serviços de Agricultura, 1915.
[17] Recordemos, a propósito, que o termo salário em kikongo é Salu e este termo traz consigo, quase sempre, o adjectivo paxi, que indica quanto é penoso e mal pago o salário recebido em ‘moeda corrente e legal’.

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