O tema
O prefácio desta dissertação define claramente a razão da preferência pelos zombo como objecto de estudo, mais ainda, coloca a pedra angular, digamos o objectivo, nas reflexões acerca da sua capacidade de liderança nos negócios mercantis da zona de influencia do reino do Kongo, até ao último quartel do século XIX e dentro do espaço geográfico que hoje forma o triangulo entre três capitais de modernos estados da Africa Ocidental: a República Popular de Angola, a República Democrática do Congo, e a Republica Popular do Congo (Congo Brazaville).
Apesar de rejeitarmos desde já as teses deterministas, começamos por sublinhar não ser possível estudar estas populações sem ter em conta o meio em que se movimentam e as respectivas relações homem-ambiente. Por isso tivemos o cuidado de iniciar a investigação abordando as ancestrais relações bantú/pigmeus como parte integrante do ecossistema da bacia do rio Zaire. O conjunto estruturado compreende os pigmeus Baynga dos Camarões, os Bambuti do Ituri do lado Ocidental e ainda os Batwa e Baka Baka ao Sul com diferentes grupos bantú. Esta aparição no espaço milenar dos pigmeus, produziu no espaço a emergência do futuro reino do Kongo.
Sem se correlacionarem os dados adquiridos dos contactos de cultura entre os povos da floresta do ecossistema florestal Zaire, pigmeus, com os povos da savana, zombo e finalmente a emergência do povo talassocrático português, dificilmente teremos a noção de abrangência que o assunto exige.
A delimitação do universo zombo ultrapassa, no nosso caso, a fronteira politica dos zombo de Angola. Introduz a novidade, (pensamos) de não os dividir dos zombo da República Democrática do Congo. Em termos culturais, económicos e especialmente da cultura tradicional kongo não faz sentido, eles são parte fundamental da sucessão e a descendência do célebre reino do Kongo. No mapa que inserimos no capitulo três e que se refere ao reino do Kongo no século XVI é bem visível a região Bambata, Ba Mbata, [1]ou ainda M’bata, designação por que começou a ser conhecido o nosso sub-grupo. São parte da essência da matriz do célebre reino do Kongo.
O seu chefe ancestral, Nsaku Ne Vunda, exerceu durante séculos o poder terreno sob o manto sagrado matrilinear da kanda Nsaku. Os zombo passaram a fazer parte do reino do Kongo com a designação de Ducado de M’Bata.[2] A sua privilegiada localização geográfica – um extenso planalto situado entre 1000 a 1100 metros de altitude – terá estado na base da escolha das íntimas relações que vieram a estabelecer-se entre o mítico Nimi a Lukeni, o“mwana” de Nsaku (leia-se o primogénito) e a autoridade mítica do grupo Kongo
Por múltiplas cartas geográficas que introduzimos no nosso estudo pudemos apreciar a zona de influência dos zombo. Foi sendo assinalada pelos pesquisadores europeus de uma forma arbitrária sem qualquer significado entre os zombo.
Para o melhor entendimento do nosso discurso, optámos por estudar separadamente os zombo na tradição, na sua inserção como parte da colónia portuguesa de Angola e a sua adaptação integração na independência (1975) da sociedade angolana.
O objectivo
Da análise bibliográfica directa ou indirectamente relacionada com os zombo, retira-se um fio condutor principal: a apetência secular deste sub-grupo étnico para o comércio internacional. Os documentos fotográficos inseridos na dissertação são disso prova insofismável. A minha relação com os Zombo de mais de 55 anos permitiu a análise. correlação e sistematização do assunto.
O comércio de caravanas de longo curso na África subsaariana começou por ser um negócio exclusivo dos tradicionais negociadores islamizados e que mobilizava milhares de carregadores. A partir de finais do século século XV, isto é, com a chegada dos portugueses à bacia do Zaire o movimento mercantil teve um enorme incremento. Os portugueses ao chegarem à foz deste grande rio, compreenderam que a partir da sua foz, deveriam de aproveitar e dar continuidade ao negócio estabelecido com o interior de África, desviando-o para portos naturais, tanto da zona marítima atlântica como da zona do Índico. Pouco depois, perceberam que uma elite privilegiada desta zona geográfica se destacava nas relações diplomática e comerciais: os zombo. Vieram a assumir o papel relevante como interlocutores da nova era comercial, grandes mandantes das caravanas de longo curso do comércio na bacia do Congo ou Zaire.
A figura do língua zombo (leia-se, o intérprete privilegiado para a resolução de todo e qualquer negócio), foi ao longo de séculos um personagem que se destacou nas relações sócio-culturais do território.. Emparceirava frequentemente ao lado das maiores autoridades políticas, sendo dotado de uma particular argúcia diplomática. O seu saber contribuiu fundamentalmente para a coexistência pacífica entre os povos da zona, uma vez que, interessados no intercâmbio comercial, não lhes interessava a guerra. Porém, quando declarada, já eles estavam preparados para a conveniente mudança de atitude. Da sua capacidade de oratória, especialmente considerada, dependia o desenvolvimento dos contactos do poder político kongo. Os tratados celebrados ao longo de séculos denotam sempre a presença da figura do língua zombo, o linguister dos ingleses e o linguará do Brasil.
Foi ao longo de séculos um povo de fronteira, tanto ambiental, como política e especialmente dedicado ao comércio de fronteira. O termo ‘comércio de fronteira ‘ designa todas as trocas comerciais realizadas entre duas potências políticas, cujos limites geográficos se confrontam.
Durante o nosso discurso falaremos de mercadores e de modelos de transacção, tomando sempre, como ponto de referência, os zombo e a sua proverbial tradição de grandes negociadores cuja ’sede comercial’ é o ‘comércio de praças’, ou seja, os nzandu, que durante o período escravocrata era designado por Pumbo (a carta geográfica assinalada na página anterior assinala a Noroeste.)
A partir do capitulo cinco podemos contactar a mudança de atitude dos Zombo face ao evidente poder de negociação dos portugueses comentado na secção ” O Advento da Civilização Técnica e da Ciência Aplicada à Consequente Situação Colonial”. Foi o período que deu início à Angola portuguesa e ao vizinho Congo Belga. Os zombo rapidamente se aperceberam que os europeus belgas e até muitos portugueses nunca se iriam adaptar ao clima do Congo. Houve situações de forte conflituosidade, especialmente com a emergência do grande chefe Buta que viria a estar na génese do movimento tribalista UPA , transformando-se em movimento nacionalista FNLA e depois partido político.
Como fica demonstrado a ocupação colonial efectiva (tal como consta do nosso discurso) durou cerca de cinquenta anos, incrementada a partir da Segunda Grande Guerra. A partir daí fizeram-se os maiores esforços para integrar os zombo na província portuguesa de Angola, sem resultado. A situação geográfica, a capacidade de simulação e dissimulação dos zombo na ordem politica permitiu-lhes resistirem. Fizeram-no com a arma mais eficaz: o comércio internacional da zona. Ainda hoje em Kinshasa os comerciantes angolanos são conhecidos como bazombo, na capital angolana conhece-nos como zairenses.Veremos o que o futuro lhes reserva.
A metodologia aplicada
A antropologia cultural e social é o centro do enquadramento ponto de vista científico desta dissertação. A etnografia zombo foi motivo de estudo sistemático no capitulo quatro em todas as suas secções. O nosso estudo não teria o devido crédito se prescindisse da fase etnográfica completada com o nosso trabalho de campo.
O estudo que envolve os zombo não poderia, igualmente, deixar de partir da perspectiva global do pensamento de Jorge Dias: a monografia, como ferramenta essencial da sistematização do trabalho antropológico. O mesmo antropólogo refere que a antropologia se caracteriza pelo estudo monográfico como sede de uma cultura total [3]. Como se depreende, o desenvolvimento da investigação do modelo monográfico não foi seguido fielmente, a abrangência dos assuntos abordados, no nosso entender ultrapassava aquela perspectiva. Utilizámos outros conceitos como o da Antropologia Visual. As fotografias que acompanham as secções são um elemento que vem, seguramente, valorizar o entendimento da análise histórico-sociológica focalizada. Os documentos e factos históricos estão na sua maioria suportados por documentos fotográficos das respectivas épocas.
O uso do kikongo, com o pormenor do traquejo do vício da pronúncia zombo foi, neste caso, de uma valência central como requisito científico. O conhecimento suficiente da língua kikongo e alguns termos de uso comum no kimbundo foram permanentemente utilizados, sendo certo que o suporte de dicionários de autores missionários europeus, tanto católicos como protestantes, enriqueceu de forma inquestionável o oportuna compreensão das citadas línguas, permitindo a análise e correspondente significado na língua portuguesa. A observação directa como primeira forma de observação também foi crucial, especialmente na última visita que fizemos à actual província do Uíje em 2005, apesar do surto da doença de Marbourg que então por lá grassava.
A Organização do Trabalho
Ao estruturarmos o trabalho na perspectiva da tradição, da colónia e da independência , permitiu começarmos por dividi-lo, primeiro face ao ecossistema onde se iniciaram os passos, para compreender o enquadramento geográfico e histórico da vida dos zombo. Passo a passo, fomos introduzindo os factos histórico-sociológicos, com documentos factuais dos actos políticos, sociais, económicos e religiosos que se foram desenrolando.
Organizámos os fundamentos históricos principalmente os que se prolongam e incidem no presente próximo, patentes que estão nos documentos. Citamos ainda os intervenientes mais importantes, mas também de outros que, por serem importantes no testemunho directo, são parte relevante do nosso estudo.
Finalmente actualizamos o presente num futuro a construir, olhando o passado mais significativo, sobretudo naquelas significações de dinâmica política, nas estruturas familiares, económicas e sociais, que um estudo deste alcance exige.
[1] Amaral, Ilídio de (1996). O Reino do Congo, os Mbundu (ou Ambundos), o reino dos “Ngola” (ou de Angola) e a Presença Portuguesa, de finais do século XV a meados do século XVI.Instituto de Investigação Científica Tropical. Ministério da Ciência e da Tecnologia. Lisboa.
[2] Oliveira, José Carlos (2004) O Comerciante do Mato – o comércio no interior de Angola e Congo. Centro de Estudos Africanos – Departamento Antropologia – Universidade Coimbra. Coimbra : p. 7.
[3] DIAS, António Jorge, ‘Introdução ao Estudo das Ciências Sociais’, in Colóquios sobre Metodologia das Ciências Sociais, Lisboa, Centro de Estudos Políticos e Sociais, Junta de Investigação do Ultramar (C.E.P.S.), 1958 pp.11-27
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