BOM DIA
Trata-se de uma das expressões que utilizamos quando saudamos alguém. Porêm, na língua Kongo, existe entre outras a expressão: luxikamene que traduzida para português resulta em "Como tens passado?". Esta frase no kikongo idiomático é muito profunda, equivale a dizer "como passaste a noite, como chegaste até aqui, enfim como é que tem sido a tua vida e a dos teus.
ARTIGO EM CONSTRUÇÃO: DIOGO CÃO ERA MAÇON?

3 Os Zombo, da Origem ao Declínio do Reino do Kongo



Carta dos Reinos do Congo, Angola e Benguela[1]

Uma das nossas preocupações, ao longo desta tese, relaciona-se com a reflexão que faremos e temos vindo a fazer quanto às diferentes formas como foram grafados determinados étimos e os nossos cuidados seguirão, de perto, aqueles expressos por Ilídio de Amaral (1996-16).[2] A palavra kongo grafada como Congo ou Kongo, parece-nos ser de grande importância para a ponderação levada a cabo neste capítulo. Ao analisarmos o texto de Amaral, geógrafo reputado, verificamos que prefere, por exemplo, a grafia [kiluangi] a [quiloange] e justifica: “Sem assumirmos qualquer posição sobre o assunto, usamos, tanto quanto possível, as grafias mais recentes, kiluanji, em vez de «quiloange» no caso dos ngola do reino de Angola; mbanza, em vez de «ambasse», no caso dos principais aglomerados do reino do Congo; Mbata em vez de «Bata» no caso de regiões etc”. Outro credenciado autor é António Brasio (1973-221) em História da Missiologia, Esparsos e Inéditos ao referir-se ao principal chefe religioso e eleitor dos reis do Kongo grafa: “ O Mani-Cabunga ou Nsaku ne Vunda” [3]. Não conseguimos encontrar explicação para as duas formas de grafia. Entretanto e quase por acaso, ao analisarmos com mais cuidado a obra de Harry Johnston (1908-XIV),[4] demos com a razão deste autor grafar umas vezes Congo e outras Kongo. Na ilustração nº 361 grafa com C “ Woman´s work: a woman of the northern Congo, near Bopoto, making pots” para logo a seguir na ilustração nº 363 utilizar o K “Bakongo woman and child…”. Percebemos então, que quando se refere às técnicas da grafia europeia relativas aos assuntos da geografia do Congo utiliza o C e quando se refere à etno-história dos povos, utiliza o K. Outro autor e neste caso de origem kongo, o padre Diogo António ( professor no Seminário Maior do Uíje, onde lecciona latim, lógica e kikongo) no seu livro Provérbios em Kikongo dá-nos a sua opinião acerca do alfabeto kikongo. 

“Oficialmente ainda não está estabelecido definitivamente. Lendo as poucas obras sobre a língua verifica-se uma grande disparidade. Há quem não use o W e o Y. Outros ainda usam o H e o E, assim por diante. Os padres capuchinhos na sua gramática (Rafael Del Fabro e Flaviano Petterlini. Gramática Kikongo, Padova, 1977) apontam 20 letras do alfabeto kikongo a saber A B D E F G I K M N O P S T U V W Y Z”[5]

Há já algumas décadas o Q começou a entrar em desuso, como por exemplo para grafar os termos quimbundo ou quicongo, como alias já nos percebemos. Porém o termo Maquela do Zombo, persiste em ser grafado com Q . Finalmente consultamos na Internet a Embaixada de Angola e de uma forma geral a mesma utiliza na generalidade o C, e só em casos muito específicos o K. Porém tanto grafa Mbanza Kongo como Mbanza Congo. 

Face ao conjunto citado e não havendo ainda consenso, decidimos utilizar o padrão da grafia do C e do K da seguinte forma: o C para termos que se reportam à geografia como por exemplo ‘Republica Democrática do Congo’ e o K para assuntos relacionados com os povos da região da Bacia do Zaire e a sua história, tal como ‘uma mulher Kongo’. 

O que nos parece aqui também relevante notar são as imprecisões lexicais que surgem quando se procura o significado dos termos nas línguas angolanas afins. Basta-nos lembrar, por exemplo, o vocábulo ‘ndumba’ que, em kikongo e kimbundu, quer dizer ‘virgem’, porém entre os cabinda quer dizer ‘prostituta’ e, finalmente, entre os tshokué significa ‘leão’. Estas disparidades têm por vezes razões que indiciam propósitos de independência étnica e criam antagonismos próprios da filosofia etnocêntrica e xenófoba. Cada vocábulo adquire um significado, por vezes próximo, outras mais distinto, consoante o subgrupo étnico, o local e a época a que nos referimos. Vejamos o termo ambasse, embasse ou mbanza, estamos a reportar-nos provavelmente ao léxico ba nsi, que deve corresponder à composição ba (povo) + nsi (ou se preferirem xi ou tchi) (a terra natal). Assim, ba nsi quererá dizer – o centro histórico, e finalmente, Banza Kongo de Mbanza Nkongo, o núcleo geo-histórico do caçador[6]

Para resolvermos no terreno estas questões de pormenor, mas de grande importância para a interpretação do discurso, foi necessário recorrer a intérpretes e, às vezes, tradutores que eram conhecidos por língua zombo, verdadeiros interlocutores da comunicação entre povos diferentes (na língua e nos costumes). Autênticos embaixadores, os língua zombo ou linguisters, como eram conhecidos entre os ingleses,[7] foram essenciais na preparação e finalização dos grandes tratos. Dificilmente se concluiria qualquer tipo de negociação, sem a sua cuidada interpretação dos factos e dos documentos. Mais à frente nos dedicaremos em pormenor a esta figura. 

Porém, um só termo basta para tornar relevante o importante: o significado dentro do contexto e da época histórica, facilitando tudo o que se vem afirmando. O autor António de Almeida é, na nossa opinião, um autor sério sobre as questões de Angola e escreveu um artigo intitulado “Subsídio para a História dos Reis do Congo”. Neste, pudemos coligir o seguinte termo: Kumba Ngudi. Diz-nos o autor que nkumba quer dizer, admiração, maledicência, umbigo e que Ungudi significa parentesco, amizade, bondade maternal. Agora vejamos o que nos diz o missionário D. António da Silva Maia[8]: nkumba, em português, quer dizer umbigo e ungudi, mais propriamente ngudi, mãe. Facilmente chegamos ao raciocínio de que kumba ngudi tem a ver com cordão umbilical. Mais nos informa António de Almeida, nas notas do artigo, que Mbanza Kongo foi o nome que substituiu o primitivo Nkumba Ungudi[9]. Assim concluímos a origem do nome kongo e a sua simbologia embora a ela nos reportaremos mais adiante. 

Em subsídio à duplicidade da etimologia kongo, surge a tradição oral, que nos explica, em grande parte, a constituição e distribuição geográfica dos subgrupos que se estendem ao longo do rio Zaire, mais propriamente, na zona dos kongo. Diz uma lenda que um grupo, dividido em pequenas comunidades clânicas, chegou à região da bacia do rio Zaire, comandado por um aristocrata descendente do rei Nimia Lukeni, soberano do reino de Kinshasa. Este aristocrata constituía um de dois gémeos e, embora a sucessão recaísse, por direito, sobre ele, uma tia materna, irmã de sua mãe, desejava levar a suceder no reino que legitimamente lhe pertenceria, o outro irmão gémeo. Quando se apercebeu da interferência de sua tia materna, aliás extremamente influente na corte e que resolvera matá-lo, o jovem que tinha sido avisado do risco que corria, resolveu abandonar o seu território, fazendo-se acompanhar pela facção que lhe era favorável na sucessão ao trono. Correm algumas versões acerca do abandono da sua terra natal. Uma delas narra que teria atravessado o rio Kuango e no território que se seguia, se instalou. Escolheu para fixação do seu povo as zonas ecótonas das florestas, (tratava-se de um povo que se dedicava à caça). O espaço era habitado por abundantes variedades cinegéticas, havia água em abundância, o que facilitava a prática da agricultura e ainda permitia a colecta de muita fruta. Como, desde cedo, lhe tinha sido ministrada educação adequada para a chefia, tornando-se hábil na ciência da gestão política e administrativa, constituiu, num local desabitado, o embrião de um estado. Por vezes, mudava de local de assento e, sempre que o fazia, constituía uma capital, que neste contexto, tinha a designação de Banza Kongo (por esse motivo, na zona, ainda hoje existem várias localidades com o nome de Banza). 

Pela segurança que nos oferece Willy Bal[10], na sua descrição sobre o significado das regiões, onde tinham lugar as grandes feiras dos séculos XV a XIX, temos pelo menos uma razão ecológica muito forte para (também por aqui) se compreender a base da implantação geográfica de Banza Kongo. 

“ (...) au sud du fleuve Congo, San Salvador, capitale du royaume du Congo, était ville d’étape pour la traite; on y venait des ports de Pinda (au sud de l’estuaire de fleuve Congo), d’Ambriz et, plus tard, de Luanda (...).” Na realidade, a zona dos muxikongos é constituída por um planalto, na zona de transição da floresta para a savana.

Esta descrição é suficientemente elucidativa para perceber que o planalto que envolve a capital do reino do Kongo, hoje reconhecida por Banza Kongo, era desde há muitos séculos preferida como estação de etapas dos pumbeiros zombo (vocábulo que tem a sua origem no termo mpumbu, vindo mais tarde a ser identificada pela palavra portuguesa pombeiro). Assim sendo, parece estar encontrada a razão principal da escolha do local da capital, sendo certo que, algumas vezes, a capital teria mudado de local.


Outeiro e cidade de S. Salvador do Congo[11] (Dapper – Description de l’Afrique, 1686) 

Neste espaço, o soberano constituiu um exército, geriu o poder, administrando-o directamente, sendo simultaneamente o juiz, (note-se que em conformidade com as limitações territoriais era-lhe exequível exercer os dois mandos) e concebeu a organização territorial, dividindo-a. A determinado momento, contactou com outro grupo bantu – os ambundo – e essa associação foi fecunda. O rei designava para governar a área de Nsundi, o seu filho primogénito e para governar Mpangu, o segundo filho. Em Mpangu, sedeava-se o exército do rei que era exclusivamente kongo, tendo em conta que o governador tinha obrigação de sustentar e treinar o seu exército, mas nunca mobilizá-lo, isso era prerrogativa do rei, estando desta forma garantida a fidelidade ao soberano. 



Antigo Reino do Kongo e áreas circundantes (segundo Cuvelier, 1946)[12]

Nas outras províncias, os chefes eram escolhidos pelas populações locais, que se dirigiam de seguida a Mbanza Kongo a apresentar cumprimentos e submissão ao rei. Este não detinha competência para os destituir, delegava sim, poderes neles. Não podemos deixar de realçar que cada subgrupo tinha os seus fundamentos e rituais próprios, apesar da capacidade unificadora dos kongo que, como grupo exocêntrico, tinha nas províncias ambundo, o enlace matrimonial. Os chamados mussuriongo e muxikongo pertenceriam à raiz onde se pretendia vir a formar a nação, considerando-se uma zona ecúmena. Fazer ecumenismo significava procurar um denominador comum que pacificasse interesses diferentes, fazendo diluir antagonismos étnicos, donde imerge flutuando uma determinada aculturação num sentido para, de seguida, por vezes abruptamente, se ver forçada a submergir para reaparecer pronta a absorver novos contornos, o que requer o tempo de séculos. Do mesmo modo, acontece nas agremiações que bordeavam o rio Zaire, em que a força de coesão era muito delicada, os interesses que ligavam, separavam e voltavam a ligar os povos e levando a frequentes guerras, mais correrias e razias, obrigavam-nos a intermitentes jogos de poder. Umas vezes prestavam vassalagem a um senhor, para dentro em breve, se verem anexados a outro potentado, o que não beneficiava em nada o seu desenvolvimento social, político, económico e cultural. 


Antigo reino do Kongo[13]

Ao falarmos geograficamente do reino do Kongo, não podemos deixar de localizar e caracterizar o grande rio do Zaire, como coordenada principal deste território. O padre António Brásio sendo, sem sombra de dúvida, um dos mais documentados investigadores portugueses, na sua História do Reino do Kongo[14] transcreve a este respeito “(…) Congo he hum reino Christão situado na Eteopia Ocidental, da banda do su: sua costa se estende da boca do rio espantozo Zayre até alem do rio Coanza, por espaço de cinco graos: terá de comprimento, conforme a opinião dos Portugueses, a quem naquele reino chamão Mundellas, que quer dizer homens brancos, duzentas legoas, que se estende da costa do mar athé os ultimos fins de Ocanga, que he a provincia mais oriental sujeita aos reis deste reino, e onde há rey por si, e de largura terá oitenta legoas, que he do rio Zayre (ao longo do qual corre o comprimento do reino para o leste) athé ao reino de Angola (...)”. Já o padre Francisco de Santa Maria, no seu livro O Ceo aberto na terra (Cap. XVIII) escreve “chamado dos naturaes Zaire, que quer dizer espantoso, & lhe quadra bem o nome pelo peso, & ímpeto das águas, e dilata boca por onde as lança no Oceano (…)”. Quanto a esta citação, o Pe. Brásio congratula a sua correcção, excepto quando este afirma que a tradução de Zaire é espantoso. Assim, vejamos, Zaire é alteração de Nzari e Djazi. Ora, o americano Stanley faz a correspondência entre o étimo Nzara e Nzavi, que significa água e, como nome comum, rio, lago, grande extensão de água até ao mar. A nossa opinião cruza-se com a de Serra Frazão (1945: 285-291). Para este autor, Nzade ou Nzadi significa, em kikongo, “o rio mais importante de certa região. Efectivamente, conhecemos um rio com o nome de Nzadi que nasce, em terras kongo, “ (…) no povo Colo, serra do Mocaba, atravessa a região, dirige-se ao Camatambo e passando por Maquela do Zombo, vai desaguar no rio Cuango, já em território belga. É muito profundo e deve ser navegável em muitos pontos. (…).”[15]

Contudo, a localização deste reino não passa só pela confluência com o rio Zaire. Temos também outros testemunhos que nos podem assistir: o autor Pigafetta, em "Relazione del reino del Congo", conforme dados do português Duarte Lopes[16], que durante doze anos percorreu o interior do Congo, afirma que este reino se estendia, na costa, por 910 quilómetros e, para o interior, a distância era de 970 quilómetros. Em 1484, o Congo era já um vastíssimo império, não se conhecendo verdadeiramente os seus limites, embora se saiba que no litoral se estendia desde o Loango ao Cabo Negro. Para a apresentação da tipologia e descrição deste reino, mais uma vez, pegamos nas palavras do padre António Brásio: 

” (…) o reino do Congo em si fértil e abundante de todas as coisas daquellas partes, necessárias para a sustentação da vida humana, posto que os moradores delle se contentão com pouco, vivendo conforme a ley natural, de duas sementeiras e creacções; do mar athé á província da Bata he algum tanto áspero, e tem algumas serras, posto que não trabalhozas, nem ásperas demasiadamente, nem de modo que impidão o caminhar; de Bata athé Ocanga (onde residem ordinariamente muitos portuguezes e tem o seu sacerdote) tudo são campinas. He regado de rios caudelosissimos, abundantes, e alguns que se podem navegar por muitas légoas; tem grandes matas a que chamam infindas, as quaes os antigos deixarão de indústria para lhe servirem de fortalezas, nas quaes há boa cópia de povoações no íntimo delas, as principaes são as de Sonho, Bamba e a de Ibar (...)”[17]

Após a sua localização geográfica, cabe-nos agora centrar o nosso estudo no acento histórico-sociológico, na geografia humana, na economia e nos aspectos culturais. 

O Manikongo dos nossos cronistas, era conhecido pelos indígenas por Mwene-kongo ou Ne-kongo, cujo poder se estendia aos territórios do Makoko, Uniamezi, Ambundo, Matamba, Kissama, Angola, Lula e Zenza, a que se podiam acrescentar os ducados e condados (assim crismados pelos nossos cronistas) da Lunda, Bata, Kongo, Luango e muitos outros. 


Mapa do Antigo Reino do Kongo[18]

Foi este o território ocupado pelos invasores kongo, conduzidos pelos alukeni, de quem os kongo se orgulham de descender. Embora o reino do Kongo se enquadrasse no sistema matrilinear, o seu regime sucessório não obedecia à regra estabelecida (o sobrinho materno sucedia ao tio materno), a monarquia kongolesa não era hereditária. O rei era eleito pelos principais chefes dos clãs matrilineares, as kanda (linhagem da origem da mãe). No começo, a selecção do rei era feita entre os membros da família real, podendo ser eleito um dos filhos ou sobrinhos do falecido monarca. Pouco importava que a sua linhagem fosse materna ou paterna. Esta particularidade resultava da relação exogâmica do casamento entre indivíduos de diferentes subgrupos. Actualmente ainda são reconhecíveis os seguintes kandas: Kavugi (linhagem da qual faz parte a dinastia "Água Rosada"), Sunda Ndumbu, Kitumba Vemba, Kinanga, Kimiala, Kintinu Necongo, Mpanzu a Nkanga, Vemba Lukani, Kinjinga, Kinemafuta, Panzo Animi e Kinzanza Amalunga. 


Carta do reino do Kongo[19]

Estes ensikongo, muxikongo, ou simplesmente xikongos, ao contactarem, pela primeira vez, com aqueles seres de outra cor, que não a sua, tiveram que encontrar um termo para as designar e se aproximar delas sem por isso serem afectados, denominaram-nos então por mindele, plural de mundele, que mais tarde viria a ter o significado de pessoa branca, dando-se a este vocábulo a origem seguinte: 

“ (…) Havia nesta costa uma ave aquática branca e grande, (que talvez fosse a garça, ainda hoje abundante no Bengo, a três léguas de Luanda) a qual os naturais denominavam Ndéle. Quando de terra se avistaram as velas brancas do primeiro navio que se aproximou de terra diziam os naturais mu’ndele, como frase abreviada de muene wa nedele, ele é ndele (ou a tal ave branca); mas reconhecendo o seu engano, referindo-se aos brancos, citando o objecto com que se tinham enganado. E assim se chama hoje em Luanda mundele, não só a pessoas brancas, mas os escravos assim denominam sem distinção de côr, qualquer pessoa calçada e trajada à europeia.(…)”[20]

Alguém, com excelente génio, pelas consequências extraordinárias da palavra deverá ter construído esta história. Mesmo assim, registamos que no século XIX, o termo ndele significava alma, espírito de homem ou mulher morta que persegue os viventes e é também o nome de uma divindade, a quem os nativos, nos seus rituais mágicos sacrificavam cabras e galinhas.[21] Como em tudo na vida, existe também a parte da malquerença e relacionado com o vocábulo mundele, existem palavras que não fogem à regra, trata-se do termo kingundo ou kangundo; no primeiro caso, aplicava-se ao mestiço, ou mesmo, ao negro que falasse a língua do branco, visto que, no segundo caso, seria aplicado, por norma, ao degredado, funante ou mesmo capitão do mato (capitão-mor) sempre de cor branca, indicando que se tratava duma pessoa ordinária, grosseira, de baixa condição. Recomendamos que se consulte a obra O comerciante do Mato (2000: 35, 41), para mais pormenores sobre o assunto. 

Para um melhor entendimento das relações entre os brancos, que chegavam com os descobrimentos, e os negros, no século XV e XVI devemos dizer que o objectivo dos portugueses, orientados pelo Infante D. Henrique e seus mestres, era a exploração da “selvagem e misteriosa” África negra. Estes homens eram, muitas vezes, recrutados, em Espanha e noutros países, entre a pior escumalha e para o seu recrutamento recorria-se a empréstimos, muitas vezes, sem riscos calculados. Diz a experiência daqueles que conhecem o termo “despojos de guerra” onde estão incluídos mulheres e crianças, que a conquista em terra inimiga não colocava aos invasores problemas humanitários. A cobiça do marfim; das peles; do ouro, o tesouro mais cobiçado (desde sempre) e, por fim, dos escravos, exerciam uma sedução desmesurada nos homens. 


O rio Zaire nos rápidos de Yelala[22]
Os principais portos deste tráfego eram na altura, Lisboa e Lagos, onde foram estabelecidas as Casas da Guiné, mais tarde, transferidas para a capital com o nome de Casa da Guiné, logo de seguida, por Casa dos Escravos, as peças[23], termo com que então se designavam os escravos. Todos os autores que se debruçam sobre a época escravocrata utilizam o termo, chegando a ser adoptado nas terras da Ginga, conforme informação de Cardonega[24]

Pelo que fica descrito pensamos ter reunido notas suficientes para se fazer compreender alguns meandros relevantes do célebre Reino do Manikongo, assim chamado no Ocidente. 

Reportemo-nos à época em que Diogo Cão, navegador português descobriu o rio Zaire ou N’zadi (reunião de águas profundas), em 1484, ou mais provavelmente, em 1482, uma vasta agremiação de povos existia já naquela zona e constituía o Reino do Kongo. Os portugueses não ignoravam a sua existência, as incursões que foram fazendo ao longo da costa da Guiné e as informações que os seus capitães foram colhendo, permitiam-lhes confirmar com maior precisão a existência de três grandes impérios: o lendário império de Prestes João; o Mwenemutapa (que insistimos em diferenciar de Monomutapa, na medida em que, quando aplicamos o prefixo Mwene, referimo-nos ao senhor cuja origem do poder é sagrado, e Mono designa o pronome pessoal, é o senhor que assim se denomina, como o senhor do Império do Kongo e estas eram as designações mais correntes naqueles tempos para este tipo de individualidades.) 




Fotografia Nº Inscrição dos navegantes portugueses no séc. XV, nos rápidos de Yelala[25]

Os povos ribeirinhos que primeiro avistaram os portugueses, ao vê-los mais de perto, com aquele tom de pele, aqueles olhos de cor diferente da sua, aquele nariz afilado e os lábios finos, fizeram-lhes lembrar deuses, até porque vinham do mar. Miravam-nos muito mais espantados que amedrontados, afinal os visitantes eram tão poucos e frequentemente pareciam muito doentes, (ainda nos finais da década de 40 e 50 do século passado, no interior mais profundo de Angola isso acontecia). No entanto, para este povo kongo que considerava o mar domínio dos mortos, aqueles homens podiam ser espíritos e representar os seus antepassados. Foi um grande acontecimento (insistimos em afirmar que um capitão experimentado em contactos anteriores, como era o caso de Diogo Cão, não deixaria nunca de enviar a terra primeiro os seus língua e demais embaixadores afim de auscultarem as reacções das populações, através dos língua autóctones).  


Notas de Rodapé:

[1] Bal, Willy (1979) Afro- Romanica Studia. Edições Poseidon. Albufeira, p.70.
[2] Amaral, Ilídio de (1996). O Reino do Congo, os Mbundu (ou Ambundos), o reino dos “Ngola” (ou de Angola) e a Presença Portuguesa, de finais do século XV a meados do século XVI. Instituto de Investigação Científica Tropical. Ministério da Ciência e da Tecnologia. Lisboa, p.16.

[3]  Brasio, António, História da Missiologia Esparsos e Inéditos, Instituto de Investigação Científica de Angola, Luanda 1973, Pg.221
[4] Johnston, Harry (1908) George Grenfell and the Congo. Hutchinson and Co. Londres. II volumes.
[5] António, Diogo, Provérbios em kikongo, Uíje, s/data, pg.5
[6] A palavra Nkongo, em kikongo quer dizer caçador e o N antes de Kongo, refere-se a nobreza, segundo o Dicionário Complementar Português Kimbundu- Kikongo (1961) de D. António da Silva Maia, Luanda.
[7] Oliveira, José Carlos (2000) O comerciante do Mato. Universidade de Coimbra. Departamento de Antropologia, pp. 60,61.
[8] Maia, D. António da Silva Maia (1961) Dicionário Complementar Português-Kimbundo-Kikongo, Edição do Autor. Ambriz.
[9] Almeida, António de. (s/d) Subsídio para a História dos Reis do Congo. Biblioteca do Instituto Superior de Ciências sociais e Políticas. Lisboa. (documento policopiado).
[10] Bal, Willy (1979) Afro- Romanica Studia. Edições Poseidon. Albufeira, p.70.
[11]Gabriel, D. Manuel Nunes (1981) Padrões da fé – Igrejas Antigas de Angola. Edição da Arquidiocese de Luanda. Braga, p.17.
[12] Delgado, Ralph (1946) História de Angola. Edição do Banco de Angola. s/l, p.163.
[13]Wing, J. Van (1959) Etudes Bakongo : sociologie, réligion et magie. Museum Lessianum. Section Missiologique, 39.
[14] Brásio, António (1969) História do Reino do Congo. Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Lisboa, p.15.
[15] Rodrigues, Jaime Raul Sepúlveda (1930) Angola – Districto do Congo. Agência Geral das Colónias. Lisboa, p. 5.
[16] Eduardo Lopez e Filippo Pigafetta (1591) Relação do Reino do Congo e Terras Circunvizinhas. Roma.
[17] Brásio, António (1969) História do Reino do Congo. Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Lisboa, pp.16 e 17.



5.1. Algumas Especificidades da ‘Situação Colonial’ entre os Zombo

5.1.  Algumas Especificidades da ‘Situação Colonial’ entre os Zombo

Desde 1910 até ao Final da 2ª Guerra Mundial (1945)

 

Todo o discurso do capítulo anterior é bem representativo do grau de exigência com que os portugueses se viram confrontados pelos seus compromissos internacionais e pela exigência do seu novo papel e a forma como os zombo entenderam algumas ambiguidades e o novo conflito, que não esperavam e com o qual começavam a confrontar-se. Tratava-se do início daquilo a que se veio entender como – o Fenómeno Colonial. Como temos vindo a perceber, os zombo faziam parte duma “elite tradicional” que, ao longo dos séculos, através de um quase monopólio do comércio de caravanas de longo curso, continuaria a dificultar a concretização desse mesmo Fenómeno Colonial. Podemos socorrer-nos das palavras do professor A. Silva Rego para definirmos este conceito: É o fenómeno pelo qual uma nação, ou mesmo, um grupo étnico se estabelece em regiões, geralmente situadas além-mar, habitadas por povos de civilização diferente ou inferior”.

Este fenómeno, com efeito, tornou-se numa complexa questão no decorrer dos últimos cinquenta anos do século XX. Quem investiga, em termos académicos, o tema, sujeita-se às consequentes críticas vindas de todos os quadrantes políticos, sociais e económicos, face à forma como reveste o seu discurso. Assim, devemos deixar claro que a fase da colonização, sobre a qual nos debruçaremos é a da colonização moderna, ou seja, aquela que resultou da Convenção de Berlim de 1884/1885.

Os colonizadores, a partir de então, eliminarão os poderes das organizações políticas tradicionais da população local. A consequência foi o início da Paz Colonial iniciando-se, assim, o ‘caminho’ da adaptação ao meio da nova e inexperiente administração civil, e com ela se faria lentamente o reagrupamento das populações. Por volta de 1906, apareceu a obrigação do imposto indígena – base política da autoridade portuguesa – cujo pagamento era obrigatório a todos os colonizados válidos. A sua aplicação e receita foram excepcionalmente importantes. Efectivamente, os homens considerados válidos tinham de se dedicar a um trabalho produtivo, caso contrário, deveriam empregar-se junto das autoridades locais. Entre os autores que se dedicaram, no terreno, ao assunto das ‘Questões Coloniais’, ressalta a autoridade de Lopo Vaz de Sampayo e Mello (1910:421) com a obra Política Indígena na qual afirma:

 

“Quando aconteça estarem os autóctones isentos de qualquer imposto antes do estabelecimento da autoridade dos colonizadores, é indispensável que a tributação que se lançar seja moderada, e que na sua cobrança se observe a mais evangélica paciência, contemporizando-se sempre que possível for, com as reclamações dos interessados. Por se terem mostrado intolerantes e exigentes os seus agentes fiscais tiveram os ingleses que sufocar penosamente sucessivas revoltas que o lançamento do imposto de palhota provocou na Serra Leoa e na Achantalandia. Há toda a vantagem em conservar o sistema de cobrança de impostos utilizado pelos indígenas, e, até em certos casos é conveniente continuar aproveitando os serviços dos primitivos recebedores.”



                     Fotografia Nº  - O hastear da bandeira da república portuguesa em S. Salvador do Congo.[1]

Apesar de todas estas cautelas por parte dos responsáveis da política indígena, muitos abusos aconteceriam, ao longo do processo da aplicação dos impostos, como já tivemos ocasião de observar. O ‘imposto de palhota’ (como é chamado por Lopo Vaz de Sampayo e Mello, na página 428, da obra citada “Nas outras regiões africanas sujeitas ao domínio portuguez, o imposto indígena, ou é um mero tributo annual de vassalagem pago pelos chefes naturaes, ou imposto de palhota que é uma espécie de contribuição predial fixa.”) com a designação de imposto de cubata, segundo o autor supracitado (1910:443) “foi criado pelo decreto de 31 de Maio de 1887, referendado por Barros Gomes, que fixou o seu quantitativo em 250 reis anuais por cada cubata”. Recordemo-nos dos problemas que a administração portuguesa teve com o grande chefe Buta até 1915 e por aí, podemos avaliar a dificuldade do recebimento do imposto. Na secção que dedicamos à 2ª Companhia  Militar de Maquela do Zombo, daremos conta novamente dessas mesmas dificuldades.
A vida dos colonos que vamos abordar, pouco ou nada se relaciona com aqueles a que os naturais do sul de Angola apelidaram de xicoronho, e que foram a base do pensamento de Norton de Matos, alto comissário de Angola, na sua segunda governação (1921/1923). Vinha investido naquele primeiro cargo com mais amplos poderes governativos da colónia, após ter desempenhado as funções de ministro das colónias e de ministro da guerra. Nessa altura, foi feito, ao nível das possibilidades da administração portuguesa, um grande esforço para incrementar a colonização dos brancos em Angola. Neto (1964:115) na sua dissertação de doutoramento Meio Século de Integração e, mais precisamente, na secção de título ‘A Acção do alto comissário Norton de Matos’ logo no início afirma o seguinte:

“A Acção de Norton de Matos, como Alto Comissário, no sector de povoamento europeu, fez-se sentir mesmo antes da sua chegada à província, porque tendo comunicado em Novembro de 1920 para Angola que no próximo mês de Janeiro chegariam com destino a Porto Alexandre 60 pescadores «poveiros» o encarregado do Governo Geral determinou por portaria a abertura de um crédito de 80.000$00 para instalação da colónia poveira e da indústria de pesca a que ia dedicar-se.
              Esse núcleo de poveiros devia de constituir, segundo as intenções de Norton, um primeiro passo para o estabelecimento, ao longo da costa e durante um período de 10 anos, de vinte povoações de pescadores metropolitanos em todos os pontos onde fosse possível encontrar água potável e que não estivessem já ocupados por povoações importantes, de modo que, para futuro, não se percorresse um grau de latitude com o mar à vista sem se encontrarem pelo menos, dois estabelecimentos constituídos por famílias metropolitanas: cidades, vilas aldeias ou simples grupos de pescadores.”

          Pela descrição do autor citado, e pelo que já foi referido, vemos que o centro e sul de Angola, em nada se comparavam com a realidade do norte de Angola, (o que ainda hoje acontece apesar da independência), se considerarmos norte, a linha que começa com a zona dos Dembos, a cinquenta quilómetros de Luanda, sensivelmente a partir da povoação do Sassa contígua à fazenda da ‘Tentativa’ produtora da monocultura de cana de açúcar localizada no Caxito. Ali, começava o profundo isolamento, só quebrados cento e vinte quilómetros mais além, na vila do Ambriz. Depois, de cerca de trezentos e cinquenta quilómetros, outro aglomerado populacional se nos deparava a vila do Bembe, com pouco mais de uma escassa meia centena de europeus incluídos os funcionários públicos.
Nesses tempos, quantas colunas de camionistas (considerando mais ou menos quatro ou cinco camionistas por coluna) juntavam-se para se entre ajudarem a passar os enormes lamaçais provocados pelas chuvas torrenciais. Iam sempre preparados com tábuas (que colocavam debaixo do chassis da viatura) para passarem os areais à custa do trabalho com enxadas, pás e catanas, para cortar troncos com que chegavam a fazer pequenos troços de estrada, por vezes com mais de cinquenta metros. Frequentemente, descarregavam metade da carga, voltando a carregá-la, após a passagem dos ditos lamaçais. Passavam-se dias e dias a fio, a comer atum enlatado, chouriço rançoso e batata-doce. Não descansavam quando o corpo pedia mas sim, quando a chuva irrompia e então havia que esperar que as condições do tempo permitissem uma nova etapa.
Entre os zombo, os colonos brancos raramente se estabeleciam na condição de colono da terra ou o célebre xicoronho, como era conhecido o emigrante português no planalto da Huila. A título de curiosidade, quanto à corruptela de colono por xicoronho, a palavra é composta pelo prefixo nsi ou xi que, mais uma vez, significa terra, no sentido de país, e coronho, que, como se torna claro, indica colono, designando assim o branco que trabalhava a terra.
Dos autores que conhecemos e que se dedicaram ao assunto, optamos por nos debruçar atentamente sobre cinco deles. Mantê-los-emos no nosso horizonte de memória, enquanto dissertarmos sobre a colonização entre os Zombo. O primeiro é conhecido da generalidade dos portugueses, foi Ministro do Ultramar, em época  difícil da governação portuguesa nas colónias, ou seja, por finais dos anos cinquenta e princípio dos anos sessenta do século passado. Trata-se de Adriano Moreira sobre quem recaiu também a responsabilidade da direcção do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, sedeada em Lisboa, escola de onde saíram os diferentes escalões dos responsáveis pela governação das colónias, embora fossem conhecidas ultimamente por províncias ultramarinas. O segundo autor trata-se de René Pélessier, o reputado investigador das questões coloniais das potências colonizadoras europeias. A ele recorreremos com frequência, pela actualidade das suas referências em relação à vida dos zombo, durante o período colonial, com as suas obras “La Colonie du Minotaure” (1978)[1], “Le Naufrage des Caravelles” (1979)[2] e “Histórias das Campanhas de Angola, Resistências e Revoltas 1845/1941[3]. Em terceiro lugar, referir-nos-emos a João Baptista Nunes Pereira Neto, e sobre ele citamos René Pelíssier (1978:36) ( “Le meilleur spécialiste de la question démontre qu’en vingt ans  (1931-1951) l’Etat se desintéressera a peu pré complètement de la colonisation dirigée…”  acrescentando que a sua tese de doutoramento ‘Angola Meio Século de Integração[4] nos tem vindo a servir para perceber a importância da sua envolvência  face ao nosso tema. Em quarto lugar apontamos para Manuel Alfredo Morais Martins, por ser um investigador que trabalhou e conheceu os zombo, durante a década de cinquenta do século passado pois ali exerceu o cargo de Administrador na vila da Damba, o que o levaria a escrever a obra ‘Contacto de Culturas no Congo Português’(1973)[5]. Finalmente, o quinto autor é Arthur Ramos de Araújo Pereira, médico psiquiatra, psicólogo social, indigenista, etnólogo, folklorista e antropólogo. O que mais nos aproxima deste autor são as comparações que podemos estabelecer muito nitidamente, com os kongo e  por consequência, com os zombo, através de três obras de sua autoria: O Negro Brasileiro(1934)[6],  O Folklore Negro do Brasil (1935)[7] e finalmente Estudos de Folk-Lore (1951)[8]. Pensamos não ser um pretensiosismo, apontarmos este escritor brasileiro, como de leitura indispensável para discorrermos sobre o pensamento zombo, especialmente pela relação temporal e pelo espírito Zeitgeist , ou seja, o "espírito da época" ou "espírito dos tempos".
Retomemos agora o título deste sub-capítulo: A ‘Situação Colonial ’ entre os Zombo.”. O seu significado é entendido segundo Adriano Moreira (1966:23) “Como um complexo peculiar de relações humanas sistematizadas tendo como fulcro um certo tipo de dependência”. De seguida, desenvolveremos os mais variados aspectos da questão, derivados da consulta de documentos históricos. Através da sua leitura, foram-se enraizando, crescendo e desenvolvendo ideias sobre a peculiaridade da colonização entre os zombo, e continuando a citar sobre a questão, Adriano Moreira (1966:25), mais claro e evidente se torna o nosso pensamento:
 “ É que a sociedade responsável pela constituição da situação colonial, quer no aspecto do colonizador, quer no aspecto do colonizado, era inteiramente diferente, nas suas características, da sociedade formada por aqueles que actualmente se encontram envolvidos no fenómeno colonial. Bastará lembrar, como nota de primeira evidência, que não tinham por essa altura, nem experiência de colonizadores nem experiência de colonizados, e que não podiam sofrer nas respectivas personalidades as pressões peculiares de uma vida em comum segundo o esquema colonial que eles próprios estabeleceram”.

Um pouco mais à frente, Adriano Moreira (1966:30) acrescenta para melhor esclarecimento:

“ (…) será então preferível, para os fins da ciência política, substituir a noção de colónia pela noção de situação colonial e dizer que esta se verifica sempre que no mesmo território habitem grupos étnicos de civilização diferente, sendo em regra o poder político exercido só por um deles, sob o signo da superioridade e acção modificadora de uma das civilizações em contacto. Quando os órgãos do poder político têm sede em território geogràficamente distinto, por acidente natural ou histórico, diz-se que a situação colonial decorre numa colónia.”

Convirá finalizar, por agora, o pensamento de Moreira (1966:37) para o enquadrar no objecto de estudo da dissertação  de  Neto (que transcreveremos abaixo:

“ Pelo que toca ao destino da relação de dependência colonial, pode o esquema colonial ser definido em função de uma final separação entre o Estado colonizador e o povo colonizado, que vem a adquirir a independência; ou pode acontecer que o fim procurado para a independência colonial seja a integração numa unidade política, que pode revestir qualquer das formas clássicas de Estado unitário ou federado, ou mesmo qualquer outra forma nova, como parece ser o objectivo da União Francesa”

Na posse deste esclarecimento, entenderemos então que a questão colonial não foi ‘uma linha recta’. Houve que agir operacionalmente conforme a conjuntura política internacional se apresentava a dado momento, e sobretudo nunca perdendo de vista os magros meios financeiros portugueses e o seu fraco excedente demográfico disponível. Apesar de todos os esforços, houve sempre grande cautela em gerir o recurso à força, com que, por vezes, a sociedade colonizadora se viu obrigada a utilizar. Os zombo reagiriam à pressão a que estavam condenados.
É por isso, oportuna e sintomática a dissertação de João Pereira Neto. Será bom que atentemos no título e na data da publicação, 1964, e daí podermos retirar algumas e preciosas ilações, bastando substituir o termo usado diferença tecnológica por poder político. Voltaremos a esta citação noutra ocasião (1964:19).

“O estrito cumprimento desses princípios é condição essencial de sobrevivência para o grupo tecnologicamente mais evoluído, se for demograficamente minoritário, porque se assim não proceder, na altura em que for superada a diferença tecnológica a reacção do grupo até então considerado inferior não só destruirá, na sua ânsia de superar o condicionalismo em que se integra, tudo o que considere revelador da sua condição de inferioridade, como inutilizará também tudo o que de bom houver sido feito pelo outro grupo”.

Com o respeito devido à autoridade do autor no tratamento deste assunto, gostaríamos de lembrar aqui uma frase que ouvimos em 1975 a Jonas Malheiro Savimbi: “Quando os elefantes se zangam quem sofre é o capim…”, na versão portuguesa: “Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão…”. Embora fosse essencial o respeito pelas condições de vida do grupo tecnicamente menos evoluído,  Neto estava muito atento e diga-se de passagem que na dissertação não se referiu a questões que sabia serem cruciais para o seu objecto de estudo. Na abordagem e referências face aos zombo, só Adriano Moreira parece não ter referido em qualquer obra ou artigo os zombo. Ainda assim, que saibamos, só Alfredo Morais Martins (1973:99) conheceu no terreno e bem os zombo, afirmando o seguinte:

 “Os mercados em todo o Congo, abstraindo da referida evolução derivada de alterações sofridas pelo comércio de exportação, tinham e têm características especiais e dignas de nota, que devem vir de recuadas eras em que a instituição se criou e se têm mantido quase incólumes até aos nossos dias, pelo menos nas áreas onde se radicaram mais firmemente e que são, precisamente, as que melhor conhecemos: Zombo e Damba”[9].

 Para reforçar o título da nossa dissertação em kikongo, diz a respeito apoiando-se em J. Van Wing, autor da obra Etudes Bakongo, Histoire et Sociologie, Bruxelas, (1921:107):

“ Na região de Mpangu que actualmente tem como centro principal a importante povoação de Thysville, no Congo Belga, a influência dos Bazombo era tanta, as visitas comerciais eram tão frequentes, que a Via Láctea, por apresentar no firmamento a mesma direcção do principal caminho trilhado pelas caravanas daqueles caminhantes infatigáveis, passou a ser conhecida por Nzila Bazombo, isto é, caminho dos bazombo”.

Veremos ainda que o nosso discurso fluirá como contribuição ao estudo das características do povo zombo, e que, umas vezes, coincidirá com as opiniões do autor citado e outras vezes rondará particularidades e factos históricos deste povo de fronteira o que, até aqui, que saibamos, não foram abordadas em dissertações académicas, nem dela demos conta em qualquer outro texto. Vamos realçar a dinâmica da plasticidade dos zombo, face à administração dos portugueses, veremos como souberam iniciar a nova adaptação à prática do contrabando de sobrevivência. A adaptação à agricultura de tráfico que as suas famílias, melhor as suas mulheres e filhas se viram compelidas a aprender, equilibrando o que precisavam para a alimentação da família até à nova colheita de outro alimento vegetal substituto, vendendo o restante nos nzandu (mercados), debaixo da tutela do chefe de família, sendo certo que talvez fosse a partir daqui que começaram a fazer o seu mealheiro e subtilmente fazerem o seu próprio mercado paralelo face ao marido. Terá sido com este povo que os portugueses terão de se entender nesta zona até 1975.


Fotografia nº Tripulação da lancha Veríssimo (375) Fotografia de Veloso e Castro 1905.

Quatro componentes da colonização portuguesa do norte de Angola, tornaram-se relevantes para a importância do seu legado no futuro desenvolvimento dos zombo. Estamos a referir-nos aos comerciantes do mato, em primeiro lugar, por serem os intérpretes das trocas mercantis, e delas, muitas vezes, se aproveitaram indevidamente não tendo o menor escrúpulo em enganar o indígena, que também não era assim tão inocente, se nos lembrarmos da secular concorrência dos mercadores islamizados na área. Seguidos dos militares, que se serviram das informações dos comerciantes, para poderem progredir no terreno, porque foram eles os principais intérpretes da ocupação efectiva, os que eram obrigados a pagar muitas vezes com a vida, a missão de que estavam investidos, carregando com o ónus do ódio ao branco.
Devemos acrescentar que os valores morais pelos quais se pauta o militar e que são a ‘honra, a vergonha e o dever’. Esses princípios trazem na sua essência os mais elementares conceitos de justiça, sendo evidente que as grandes agruras passadas em campanha também levam ao desleixo e, muitas vezes, ao rompimento com os valores acima mencionados.
De seguida, referimo-nos aos missionários que não necessitam de apresentação, dada a sua presença por estas paragens desde a chegada de Diogo Cão (1483). À sua acção dedicámos já uma parte substancial da primeira parte da dissertação quando demos a nossa contribuição para os “Antecedentes dos Zombo com o Reino do Kongo”, porém, devemos acrescentar que as relações entre duas igrejas – a católica e a protestante e o Residente em S. Salvador do Kongo, não foram nada fáceis – a partir de 1878, com o início das relações de George Grenfell, primeiro director da Baptist Missionary Society, relatadas numa obra extraordinária (da qual não demos fé nem nas Bibliotecas das Universidades Portuguesas nem na Biblioteca da própria Sociedade de Geografia de Lisboa) que o autor Harry Johnston (1908) intitulou ‘George Grenfell and the Congo[1].
            Abaixo reproduziremos uma célebre fotografia de George Grenfell em S. Salvador. No nosso estudo, não estamos interessados em filiações religiosas, interessam-nos sim as figuras e as obras destes dois homens excepcionais, por ordem de chegada a S. Salvador: George Grenfell e o padre António Barroso.


Fotografia Nº George Grenfell em S. Salvador 1878 , da obra George Grenfell and the Congo



[1] Johnston, Harry (1908) George Grenfell and the Congo. Hutchinson & Co. Londres. 2 Volumes


A nossa formação antropológica dedica particular atenção à Antropologia Visual, e a fotografia acima sugere-nos dois reparos: Grenfell está apoiado numa carabina e devidamente vestido para enfrentar os caminhos do mato. Perguntamo-nos como o faria o padre António Barroso. Não é a nossa opinião que está em causa, mas sim os factos e as relações consequentes das preocupações sociais dos missionários para com os povos kongo da região. Iremos ao encontro da história com documentos, e neste caso, embora saibamos das posições ideológicas tanto de Heliodoro Faria Leal, como de Norton de Matos, lembremo-nos que um era localmente o representante do governo e outro a autoridade máxima na altura em Angola. Comecemos por dar a palavra ao primeiro, acerca do trabalho missionário, em geral, e depois, em particular, acerca de António Barroso:

“ Ao chegarmos à povoação vindos do caminho de Noqui, encontramos em primeiro lugar o cercado de sebes vivas que separa do caminho os terrenos ocupados pelos missionários da Baptist Missionary Society , com pavilhões de moradia de cada missionário, o dispensário para o tratamento dos indígenas e a farmácia . Em frente, uma área de terreno limpo aguarda a concessão pedida há mais de um ano para a edificação do hospital em madeira, a que já nos referimos, cujos materiais o Governo da metrópole dispensou de direitos, atendendo ao fim meritório a que visam, mas que se vão perdendo pela acção do tempo e do salalé (formiga branca) devido às dificuldades das, sempre variadas, leis de concessões de terrenos. Se tornearmos o cercado das habitações dos missionários ingleses, dando-lhes a direita, passamos a escola e o templo dos protestantes e logo avistamos os pavilhões de madeira, da missão católica portuguesa e a igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição. À vista uma da outra as igrejas, católica e protestante, são as sentinelas isoladas e imóveis dos dois implacáveis campos religiosos, que tem disputado palmo a palmo, mais do que as almas para Deus, adeptos para a sua influência política e de raça, assentes nos arraiais sobre os alicerces de vários conventos de frades![1]



[1] Leal, Heliodoro Faria (1914). Estudos Coloniais-Memórias de África. Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa. 10: 349

Embora, pelo que deixou escrito deixasse entender a sua inclinação para privilegiar os missionários protestantes, o que escreveu sobre o padre António Barroso deixa entender o respeito pelas atribuições do missionário, que se seguem descritas:

“Inteligente e activo o padre Barroso lançou as bases da moderna propaganda religiosa católica e se não levou de vencida os seus antagonistas protestantes sustentou, contudo, briosamente a contenda e criou um forte núcleo de adeptos, no que teve como auxiliares e seguidores os padres Sebastião José Pereira, Mathias, Gata, Albuquerque e Pequito, jazendo este último no abandonado cemitério de S. Salvador do Congo”[1]


Fotografia Nº          Da obra: Memórias e Trabalhos da Minha Vida III volume pag.144

A última componente, por ter sido a última a chegar, os administradores de circunscrição e os sacrificados chefes de posto que viriam a substituir os capitães-mores, note-se que dizemos sacrificados porque Portugal e a administração colonial portuguesa nunca os recompensou devidamente, especialmente nos seus vencimentos e regalias (só facultadas a administradores de circunscrição). Algumas vezes, foi-lhes apontada brutalidade e injustiça no cumprimento dos seus deveres, que diga-se em abono da verdade alguns mereceram, mas a maioria sabia, isolada como estava, que impor pela força a autoridade era condição sine qua non para uma vida passada a ser odiado sem necessidade.
Aqui, não se abordará a colonização dirigida porque pura e simplesmente não se verificou nesta parte de Angola. Os percursos, que os europeus faziam em caravana ou isolados, eram os mesmos que os zombo percorriam há séculos. Poucos fazem ideia do que era passar o terreno dos dembos, o calor insuportável, o andar, ou melhor, o arrastar dos pés pelos areais do Libombo ao Tabi e daqui por sua vez ao Ambriz. A falta de água potável, os lamaçais, o corpo rasgado pelas espinheiras, o medo de ser mordido por uma serpente e, acima de tudo, os mosquitos que com as suas constantes picadas não deixavam as gentes em paz, tornavam-se as mais implacáveis dificuldades. Entre os inconvenientes climáticos, havia a destacar a predominância de um tempo quente e húmido, que fazia com que a roupa estivesse permanentemente colada ao corpo, fazendo dos viajantes presas fáceis dos agentes infecciosos, como os insectos vectores, os protozoários, os fungos, os vírus e bactérias. Alguns são cosmopolitas, como os da lepra, tuberculose, febre tifóide e desinteria amebiana, outros eram de origem exclusivamente africana como os da bilharziose, das tripanosomíases e da febre-amarela. Sem dúvida, que esses europeus ‘compradores de ilusões’ se encontravam em terrenos da maior concentração de doenças malignas existentes nas terras africanas. Não admira que muitos desses viajantes morressem logo após os primeiros meses da chegada.
Os brancos que nos primórdios do século XX avançaram sobre o norte de Angola e mais especificamente os que ocuparam a savana zombo e que precederam os militares ou os seguiram, foram os comerciantes do mato que substituíram os funantes e formaram uma das componentes a que nos referimos nesta secção da dissertação.

[1] Idem, p. 353

            A relação directa que temos com o assunto prende-se com um longo período da nossa vida: o da convivência com os zombo, no seu ‘chão’ de origem. Foram vinte e cinco longos anos de aprendizagem ininterrupta com os zombo  e que ocuparam parte da nossa juventude e da nossa vida adulta. A esta relação dedicaremos parte do espaço da colonização 1945/1975. Pessoalmente, fizemos parte dessa faixa de portugueses que  andaram de ‘mochila às costas’, o que acontecia e ainda acontece, pelas mais variadas razões, como por exemplo:
  A conquista, o espírito de aventura, o rigor climático, a questão da fome, as perseguições políticas e religiosas, a busca de terras mais generosas ou menos densamente povoadas, a inquietação perante as crises económicas e os períodos de desemprego, o desejo de melhoria de condições de vida, a simples curiosidade, a renovação de horizontes, entre outros.[1]

Por nós, pensamos que se deve acrescentar, pela parte que cabe às razões da necessidade de emigrar - a pressão familiar, os conflitos dentro dela gerados e a fuga à justiça, por prática de crimes da mais variada ordem, como factores preponderantes na equação do problema da deslocação das classes menos privilegiadas para países distantes.
Não trataremos aqui a questão da Colonização Científica Portuguesa, que tanto quanto sabemos, foi tradicionalmente empírica. Só em 1906, se fundou a Escola Colonial, como instituição pedagógica e, em 1926, dela emergiu a Escola Superior Colonial, também da responsabilidade da Sociedade de Geografia de Lisboa e que viria mais tarde a dar lugar ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina para finalizar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
            Apesar deste extraordinário avanço, Angola e Moçambique continuaram a receber os europeus disponíveis, sendo que a esmagadora maioria eram homens ‘arremessados’ ao território isoladamente, mal sabendo ler e escrever. Mesmo em 1963, no decorrer de uma célebre operação de povoamento apressada e desfasada, o célebre batalhão Ferreira da Costa, deparámo-nos com uma situação idêntica. A recepção aos ditos ‘colonos’ era feita em instalações adaptadas no bairro da Terra Nova, em Luanda. Estavam lá albergados perto de trezentos colonos disponíveis, nenhum tinha a antiga quarta classe e todos eram agricultores. Nenhum era pedreiro, carpinteiro, serralheiro, pintor, enfermeiro, entre outras especializações.
Os colonos do início da ocupação, ao serem levados, muitas vezes, enganados por outros, para a terra dos zombo beneficiaram da pacificação militar ou do seu início. Se alguma sabedoria tinham, era só a da sua tradicional cultura popular da terra de origem e mesmo essa componente da cultura, era na maioria das vezes a menos louvável. Tratava-se da ‘cultura do desenrasca’, onde “na terra dos cegos quem tem um olho é rei”. Cabe aqui referir que a administração colonial implantada na zona, utilizava como bandeira, principal esta componente comercial, uma vez que a sua futura maneira de estar como comerciante o fixaria à terra.
É verdade que o agente do governo na zona, corria o risco do comerciante se aproveitar da pressão militar exercida sobre o indígena, para o roubar descaradamente. A princípio, o indígena, pouca ou nenhuma atenção lhe merecia, só entendia se era ou não difícil a aquisição dos produtos permutados, perceptível pela maior ou menor colaboração dos nativos. Porém, a plasticidade social do português, assimilador fácil de valores sociais, corrigia os seus defeitos com a necessidade de se adaptar ao meio social o melhor possível, e neste caso os zombo. Por isso, aqueles que vingavam dos martírios a que a terra os submetia, (salvo os missionários por serem católicos), breve se fixavam à terra através da ligação à mulher da terra. Na nossa opinião, esta ligação, em termos da aceitação ou não, pelos homens da terra, não foi fácil, porque estavam simplesmente habituados a mandar. As mulheres iriam para onde o chefe da família extensa mandasse. Os novos elementos militares ou da administração civil tinham aparentemente a vida mais facilitada pelo seu emergente papel de senhores da terra. Permitiam-se em alguns casos, mais frequentes do que seria de desejar, sujeitar as autoridades tradicionais ao silêncio e a anuição dos zombo em geral não lhes interessava. Porém, nem tudo era tão linear como aqui se possa deixar transparecer. Muitas vezes, a mulher nativa, muito nova, era introduzida na administração com as instruções precisas dos mfumu a vata. Tornava-se imperativo que engravidasse.



[1] Barata, Óscar Soares (1965) Migrações e Povoamento. Edição da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa: p.7.


Fotografia Nº      de Veloso e Castro 1912

De seguida, o administrativo seria confrontado pelos seus superiores face à situação em que se tinha deixado enredar, e aí, a mulher, com os filhos que conseguisse do branco, viria a ter um papel relevante nos serviços a prestar à sua comunidade. O mesmo se passava com o comerciante do mato. Neste caso, o processo era muito mais rápido. O seu permanente contacto com a Vata e as condições a que era obrigado a aceitar por parte do mfumu a vata a que se acrescentava a sua veia oportunista, caso quisesse sobreviver, não lhe permitia outra escolha. Toda a família extensa vinha comer do ‘barraco’ (a casa comercial de pau a pique), todos os tios, sobrinhos, irmãos, todas as mães e pais (leia-se mamã e tata). Seria possível a este homem aguentar as teias do sistema? Acabava muitas vezes por perecer, deixando como único rasto os filhos mestiços. A verdade é que conhecemos já idosos, homens de sucesso, vindos deste lote de ‘compradores de ilusões’.

Fotografia Nº                    acervo de Veloso e Castro

A experiência dos contactos que tivemos desde a nossa infância (1944) até 1975, dão-nos respostas diversas. A primeira e mais corrente, era a que se verificava nos centros urbanos, o homem branco não assumia as suas responsabilidades com a mulher negra, não respeitava os vínculos parentais em que se tinha enredado. Normalmente fugia, denunciando a incapacidade de assumir a paternidade, mudando de terra. Outros, alardeavam a sua indiferença de ‘condição superior’ e ignoravam os filhos pura e simplesmente. A mulher negra, frequentemente pressionada pela sua parentela, descia à cidade e, de filho às costas, vinha dizer àquele homem que o filho era dele, que Deus lho tinha dado. O branco, por sua vez, alegava então que nunca a tinha visto e que ela o que queria era comer de graça com toda a sua família. Podemos acrescentar que perante este tipo de problema, o mundo não mudou de lá para cá.   
A verdade é que hoje, em Portugal, existem casos (não raros) de portugueses, que regressados em 1975 e mesmo alguns anos depois, trouxeram as suas mães pretas. Os filhos destas uniões estão hoje perfeitamente integrados no continente e já constituíram família por cá. Quanto aos brancos, que posteriormente se casaram em Angola com mulheres da terra, é assunto que ultrapassa o âmbito desta dissertação. Os caminhos que traçou a integração, não foram certamente os que os homens imaginaram, mas sim aqueles que a vida permitiu que acontecessem.
Este assunto naturalmente não se esgota aqui. No capítulo seguinte, referir-nos-emos, com maior detalhe e actualidade, à forma como a administração portuguesa viria a procurar incentivar o processo colonial através da integração, termo utilizado muito a propósito por Neto (1964:20) e a que viremos debruçar-nos com a atenção que o assunto nos merece. [1]
Porém, os zombo que como já vimos, têm um extraordinário apego à sua liberdade de movimentos, começando pela forma como naturalmente pretendiam e pretendem gerir a sua escolha de trabalho, que coincide com um arrogante desprezo por tarefas que sempre consideraram servis. Curiosamente, viriam a ser reputados como excelentes alfaiates, lavadeiros e cozinheiros. Preferiram ser eles a empregar-se tanto nas casas dos administradores coloniais, como em casa dos fazendeiros ou comerciantes do mato. Admitimos aqui, mais uma vez, que se apressavam a ficar com os trabalhos, não só menos cansativos mas também escolher entre aqueles que lhes permitissem ter acesso à intimidade da casa dos brancos. O trabalho da agricultura e venda nos mercados foi sempre da responsabilidade das mulheres. Estas ocupações também lhes deixavam margem para se dedicarem à caça e às célebres fundações (aquilo a que podemos comparar com as nossas sessões parlamentares) e, a partir de agora, ao pequeno comércio de sobrevivência – o contrabando. A sua integração também se ia fazendo pelo lado que circunstancialmente mais lhes interessava.
Contudo, há que notar que, de uma forma geral, tanto a população negra como a branca se sujeitava facilmente (talvez até por raízes culturais) à situação de profunda submissão, não discutindo nunca, independentemente da razão, o trabalho que lhes era atribuído.
Assim, o que deixamos dito é suficiente para se compreenderem os esforços dos mfumu a nsi, mfumu a vata, como líderes das populações zombo, em geral localizados nas proximidades da fronteira zombo, muxikongo e yaka, para extraírem o máximo de proveito da presença das autoridades portuguesas e belgas. À primeira vista, o que acabamos de dizer  parece um paradoxo, porém os zombo gozavam da maior liberdade em relação às autoridades estabelecidas, uma vez que estas não conheciam as nzila que levavam directamente a qualquer dos lados da fronteira, tendo em vista o novo intercâmbio comercial dos novos bens em circulação.
Nestas circunstâncias, não surpreende que o controlo (em bens e pessoas) das nzila constituísse a maior preocupação das autoridades portuguesas e belgas. Por esta razão, se pode explicar a constante emergência de novas vata, grandes e pequenas, cujas zonas de influência viriam mais tarde a assumir notáveis tentáculos sociopolíticos. Foram-se estendendo, ao longo de toda a fronteira, o que viria a permitir o ressurgimento do velho pensamento da reunificação do antigo reino do Kongo. Desta estratégia, nasceu o que se tornaria provavelmente o maior problema da administração portuguesa de Angola, nesta zona, o ressurgimento dos movimentos mágicos e proféticos kongo, raiz de onde viria a emergir o tocoísmo, ao qual dedicaremos a devida atenção na parte final da colonização (1940/1975).



[1] Pereira Neto, João Baptista Nunes (1964)  obra citada




[1] Pélissier, René (1978) La Colonie du Minotaure, Nationalismes et révoltes en Angola, Edições  Pelissier, Montamets,. France
[2] Idem, (1979) Le Naufrage des Caravelles, Études sur le Fin de L’Empire Portugais (1961-1975) Editions Pelissier, Montamets. France
[3] Idem, (1986) História das Campanhas de Angola, Resistência e Revoltas (1845/1941). Editorial Estampa, Lisboa
[4] Pereira Neto, João Baptista Nunes (1964). Angola Meio Século de Integração. Tese de Doutoramento. Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Lisboa. 332 pp.
[5] Martins, Manuel Alfredo Morais (1973) Contacto de Culturas no Congo Português. Separata da Revista Estudos Políticos e Sociais. Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Lisboa
[6] Ramos, Arthur Ramos de Araújo Pereira, O Negro Brasileiro, Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1934
[7] Idem (1935) O Folklore Negro do Brasil. Livraria da Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro
[8] Idem (1951) Estudos de Folk-Lore. Livraria Casa do estudante do Brasil. Rio de Janeiro

[9] Martins, Manuel Alfredo Morais (1973) Contacto de Culturas no Congo Português. Separata da Revista Estudos Políticos e Sociais. Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Lisboa



[1] Presumimos que o acontecimento retratado teve lugar em 1 de Julho de 1911. Dizemos isto, pela descrição dos acontecimentos que o Residente Faria Leal reporta durante a eleição de Manuel Martins Kidito a que nos referimos quando abordamos esta questão.