Carta dos Reinos do Congo, Angola e Benguela[1]
Uma das nossas preocupações, ao longo desta tese, relaciona-se com a reflexão que faremos e temos vindo a fazer quanto às diferentes formas como foram grafados determinados étimos e os nossos cuidados seguirão, de perto, aqueles expressos por Ilídio de Amaral (1996-16).[2] A palavra kongo grafada como Congo ou Kongo, parece-nos ser de grande importância para a ponderação levada a cabo neste capítulo. Ao analisarmos o texto de Amaral, geógrafo reputado, verificamos que prefere, por exemplo, a grafia [kiluangi] a [quiloange] e justifica: “Sem assumirmos qualquer posição sobre o assunto, usamos, tanto quanto possível, as grafias mais recentes, kiluanji, em vez de «quiloange» no caso dos ngola do reino de Angola; mbanza, em vez de «ambasse», no caso dos principais aglomerados do reino do Congo; Mbata em vez de «Bata» no caso de regiões etc”. Outro credenciado autor é António Brasio (1973-221) em História da Missiologia, Esparsos e Inéditos ao referir-se ao principal chefe religioso e eleitor dos reis do Kongo grafa: “ O Mani-Cabunga ou Nsaku ne Vunda” [3]. Não conseguimos encontrar explicação para as duas formas de grafia. Entretanto e quase por acaso, ao analisarmos com mais cuidado a obra de Harry Johnston (1908-XIV),[4] demos com a razão deste autor grafar umas vezes Congo e outras Kongo. Na ilustração nº 361 grafa com C “ Woman´s work: a woman of the northern Congo, near Bopoto, making pots” para logo a seguir na ilustração nº 363 utilizar o K “Bakongo woman and child…”. Percebemos então, que quando se refere às técnicas da grafia europeia relativas aos assuntos da geografia do Congo utiliza o C e quando se refere à etno-história dos povos, utiliza o K. Outro autor e neste caso de origem kongo, o padre Diogo António ( professor no Seminário Maior do Uíje, onde lecciona latim, lógica e kikongo) no seu livro Provérbios em Kikongo dá-nos a sua opinião acerca do alfabeto kikongo.
“Oficialmente ainda não está estabelecido definitivamente. Lendo as poucas obras sobre a língua verifica-se uma grande disparidade. Há quem não use o W e o Y. Outros ainda usam o H e o E, assim por diante. Os padres capuchinhos na sua gramática (Rafael Del Fabro e Flaviano Petterlini. Gramática Kikongo, Padova, 1977) apontam 20 letras do alfabeto kikongo a saber A B D E F G I K M N O P S T U V W Y Z”[5].
Há já algumas décadas o Q começou a entrar em desuso, como por exemplo para grafar os termos quimbundo ou quicongo, como alias já nos percebemos. Porém o termo Maquela do Zombo, persiste em ser grafado com Q . Finalmente consultamos na Internet a Embaixada de Angola e de uma forma geral a mesma utiliza na generalidade o C, e só em casos muito específicos o K. Porém tanto grafa Mbanza Kongo como Mbanza Congo.
Face ao conjunto citado e não havendo ainda consenso, decidimos utilizar o padrão da grafia do C e do K da seguinte forma: o C para termos que se reportam à geografia como por exemplo ‘Republica Democrática do Congo’ e o K para assuntos relacionados com os povos da região da Bacia do Zaire e a sua história, tal como ‘uma mulher Kongo’.
O que nos parece aqui também relevante notar são as imprecisões lexicais que surgem quando se procura o significado dos termos nas línguas angolanas afins. Basta-nos lembrar, por exemplo, o vocábulo ‘ndumba’ que, em kikongo e kimbundu, quer dizer ‘virgem’, porém entre os cabinda quer dizer ‘prostituta’ e, finalmente, entre os tshokué significa ‘leão’. Estas disparidades têm por vezes razões que indiciam propósitos de independência étnica e criam antagonismos próprios da filosofia etnocêntrica e xenófoba. Cada vocábulo adquire um significado, por vezes próximo, outras mais distinto, consoante o subgrupo étnico, o local e a época a que nos referimos. Vejamos o termo ambasse, embasse ou mbanza, estamos a reportar-nos provavelmente ao léxico ba nsi, que deve corresponder à composição ba (povo) + nsi (ou se preferirem xi ou tchi) (a terra natal). Assim, ba nsi quererá dizer – o centro histórico, e finalmente, Banza Kongo de Mbanza Nkongo, o núcleo geo-histórico do caçador[6].
Para resolvermos no terreno estas questões de pormenor, mas de grande importância para a interpretação do discurso, foi necessário recorrer a intérpretes e, às vezes, tradutores que eram conhecidos por língua zombo, verdadeiros interlocutores da comunicação entre povos diferentes (na língua e nos costumes). Autênticos embaixadores, os língua zombo ou linguisters, como eram conhecidos entre os ingleses,[7] foram essenciais na preparação e finalização dos grandes tratos. Dificilmente se concluiria qualquer tipo de negociação, sem a sua cuidada interpretação dos factos e dos documentos. Mais à frente nos dedicaremos em pormenor a esta figura.
Porém, um só termo basta para tornar relevante o importante: o significado dentro do contexto e da época histórica, facilitando tudo o que se vem afirmando. O autor António de Almeida é, na nossa opinião, um autor sério sobre as questões de Angola e escreveu um artigo intitulado “Subsídio para a História dos Reis do Congo”. Neste, pudemos coligir o seguinte termo: Kumba Ngudi. Diz-nos o autor que nkumba quer dizer, admiração, maledicência, umbigo e que Ungudi significa parentesco, amizade, bondade maternal. Agora vejamos o que nos diz o missionário D. António da Silva Maia[8]: nkumba, em português, quer dizer umbigo e ungudi, mais propriamente ngudi, mãe. Facilmente chegamos ao raciocínio de que kumba ngudi tem a ver com cordão umbilical. Mais nos informa António de Almeida, nas notas do artigo, que Mbanza Kongo foi o nome que substituiu o primitivo Nkumba Ungudi[9]. Assim concluímos a origem do nome kongo e a sua simbologia embora a ela nos reportaremos mais adiante.
Em subsídio à duplicidade da etimologia kongo, surge a tradição oral, que nos explica, em grande parte, a constituição e distribuição geográfica dos subgrupos que se estendem ao longo do rio Zaire, mais propriamente, na zona dos kongo. Diz uma lenda que um grupo, dividido em pequenas comunidades clânicas, chegou à região da bacia do rio Zaire, comandado por um aristocrata descendente do rei Nimia Lukeni, soberano do reino de Kinshasa. Este aristocrata constituía um de dois gémeos e, embora a sucessão recaísse, por direito, sobre ele, uma tia materna, irmã de sua mãe, desejava levar a suceder no reino que legitimamente lhe pertenceria, o outro irmão gémeo. Quando se apercebeu da interferência de sua tia materna, aliás extremamente influente na corte e que resolvera matá-lo, o jovem que tinha sido avisado do risco que corria, resolveu abandonar o seu território, fazendo-se acompanhar pela facção que lhe era favorável na sucessão ao trono. Correm algumas versões acerca do abandono da sua terra natal. Uma delas narra que teria atravessado o rio Kuango e no território que se seguia, se instalou. Escolheu para fixação do seu povo as zonas ecótonas das florestas, (tratava-se de um povo que se dedicava à caça). O espaço era habitado por abundantes variedades cinegéticas, havia água em abundância, o que facilitava a prática da agricultura e ainda permitia a colecta de muita fruta. Como, desde cedo, lhe tinha sido ministrada educação adequada para a chefia, tornando-se hábil na ciência da gestão política e administrativa, constituiu, num local desabitado, o embrião de um estado. Por vezes, mudava de local de assento e, sempre que o fazia, constituía uma capital, que neste contexto, tinha a designação de Banza Kongo (por esse motivo, na zona, ainda hoje existem várias localidades com o nome de Banza).
Pela segurança que nos oferece Willy Bal[10], na sua descrição sobre o significado das regiões, onde tinham lugar as grandes feiras dos séculos XV a XIX, temos pelo menos uma razão ecológica muito forte para (também por aqui) se compreender a base da implantação geográfica de Banza Kongo.
“ (...) au sud du fleuve Congo, San Salvador, capitale du royaume du Congo, était ville d’étape pour la traite; on y venait des ports de Pinda (au sud de l’estuaire de fleuve Congo), d’Ambriz et, plus tard, de Luanda (...).” Na realidade, a zona dos muxikongos é constituída por um planalto, na zona de transição da floresta para a savana.
Esta descrição é suficientemente elucidativa para perceber que o planalto que envolve a capital do reino do Kongo, hoje reconhecida por Banza Kongo, era desde há muitos séculos preferida como estação de etapas dos pumbeiros zombo (vocábulo que tem a sua origem no termo mpumbu, vindo mais tarde a ser identificada pela palavra portuguesa pombeiro). Assim sendo, parece estar encontrada a razão principal da escolha do local da capital, sendo certo que, algumas vezes, a capital teria mudado de local.
Outeiro e cidade de S. Salvador do Congo[11] (Dapper – Description de l’Afrique, 1686)
Neste espaço, o soberano constituiu um exército, geriu o poder, administrando-o directamente, sendo simultaneamente o juiz, (note-se que em conformidade com as limitações territoriais era-lhe exequível exercer os dois mandos) e concebeu a organização territorial, dividindo-a. A determinado momento, contactou com outro grupo bantu – os ambundo – e essa associação foi fecunda. O rei designava para governar a área de Nsundi, o seu filho primogénito e para governar Mpangu, o segundo filho. Em Mpangu, sedeava-se o exército do rei que era exclusivamente kongo, tendo em conta que o governador tinha obrigação de sustentar e treinar o seu exército, mas nunca mobilizá-lo, isso era prerrogativa do rei, estando desta forma garantida a fidelidade ao soberano.
Antigo Reino do Kongo e áreas circundantes (segundo Cuvelier, 1946)[12]
Nas outras províncias, os chefes eram escolhidos pelas populações locais, que se dirigiam de seguida a Mbanza Kongo a apresentar cumprimentos e submissão ao rei. Este não detinha competência para os destituir, delegava sim, poderes neles. Não podemos deixar de realçar que cada subgrupo tinha os seus fundamentos e rituais próprios, apesar da capacidade unificadora dos kongo que, como grupo exocêntrico, tinha nas províncias ambundo, o enlace matrimonial. Os chamados mussuriongo e muxikongo pertenceriam à raiz onde se pretendia vir a formar a nação, considerando-se uma zona ecúmena. Fazer ecumenismo significava procurar um denominador comum que pacificasse interesses diferentes, fazendo diluir antagonismos étnicos, donde imerge flutuando uma determinada aculturação num sentido para, de seguida, por vezes abruptamente, se ver forçada a submergir para reaparecer pronta a absorver novos contornos, o que requer o tempo de séculos. Do mesmo modo, acontece nas agremiações que bordeavam o rio Zaire, em que a força de coesão era muito delicada, os interesses que ligavam, separavam e voltavam a ligar os povos e levando a frequentes guerras, mais correrias e razias, obrigavam-nos a intermitentes jogos de poder. Umas vezes prestavam vassalagem a um senhor, para dentro em breve, se verem anexados a outro potentado, o que não beneficiava em nada o seu desenvolvimento social, político, económico e cultural.
Antigo reino do Kongo[13]
Ao falarmos geograficamente do reino do Kongo, não podemos deixar de localizar e caracterizar o grande rio do Zaire, como coordenada principal deste território. O padre António Brásio sendo, sem sombra de dúvida, um dos mais documentados investigadores portugueses, na sua História do Reino do Kongo[14] transcreve a este respeito “(…) Congo he hum reino Christão situado na Eteopia Ocidental, da banda do su: sua costa se estende da boca do rio espantozo Zayre até alem do rio Coanza, por espaço de cinco graos: terá de comprimento, conforme a opinião dos Portugueses, a quem naquele reino chamão Mundellas, que quer dizer homens brancos, duzentas legoas, que se estende da costa do mar athé os ultimos fins de Ocanga, que he a provincia mais oriental sujeita aos reis deste reino, e onde há rey por si, e de largura terá oitenta legoas, que he do rio Zayre (ao longo do qual corre o comprimento do reino para o leste) athé ao reino de Angola (...)”. Já o padre Francisco de Santa Maria, no seu livro O Ceo aberto na terra (Cap. XVIII) escreve “chamado dos naturaes Zaire, que quer dizer espantoso, & lhe quadra bem o nome pelo peso, & ímpeto das águas, e dilata boca por onde as lança no Oceano (…)”. Quanto a esta citação, o Pe. Brásio congratula a sua correcção, excepto quando este afirma que a tradução de Zaire é espantoso. Assim, vejamos, Zaire é alteração de Nzari e Djazi. Ora, o americano Stanley faz a correspondência entre o étimo Nzara e Nzavi, que significa água e, como nome comum, rio, lago, grande extensão de água até ao mar. A nossa opinião cruza-se com a de Serra Frazão (1945: 285-291). Para este autor, Nzade ou Nzadi significa, em kikongo, “o rio mais importante de certa região. Efectivamente, conhecemos um rio com o nome de Nzadi que nasce, em terras kongo, “ (…) no povo Colo, serra do Mocaba, atravessa a região, dirige-se ao Camatambo e passando por Maquela do Zombo, vai desaguar no rio Cuango, já em território belga. É muito profundo e deve ser navegável em muitos pontos. (…).”[15]
Contudo, a localização deste reino não passa só pela confluência com o rio Zaire. Temos também outros testemunhos que nos podem assistir: o autor Pigafetta, em "Relazione del reino del Congo", conforme dados do português Duarte Lopes[16], que durante doze anos percorreu o interior do Congo, afirma que este reino se estendia, na costa, por 910 quilómetros e, para o interior, a distância era de 970 quilómetros. Em 1484, o Congo era já um vastíssimo império, não se conhecendo verdadeiramente os seus limites, embora se saiba que no litoral se estendia desde o Loango ao Cabo Negro. Para a apresentação da tipologia e descrição deste reino, mais uma vez, pegamos nas palavras do padre António Brásio:
” (…) o reino do Congo em si fértil e abundante de todas as coisas daquellas partes, necessárias para a sustentação da vida humana, posto que os moradores delle se contentão com pouco, vivendo conforme a ley natural, de duas sementeiras e creacções; do mar athé á província da Bata he algum tanto áspero, e tem algumas serras, posto que não trabalhozas, nem ásperas demasiadamente, nem de modo que impidão o caminhar; de Bata athé Ocanga (onde residem ordinariamente muitos portuguezes e tem o seu sacerdote) tudo são campinas. He regado de rios caudelosissimos, abundantes, e alguns que se podem navegar por muitas légoas; tem grandes matas a que chamam infindas, as quaes os antigos deixarão de indústria para lhe servirem de fortalezas, nas quaes há boa cópia de povoações no íntimo delas, as principaes são as de Sonho, Bamba e a de Ibar (...)”[17]
Após a sua localização geográfica, cabe-nos agora centrar o nosso estudo no acento histórico-sociológico, na geografia humana, na economia e nos aspectos culturais.
O Manikongo dos nossos cronistas, era conhecido pelos indígenas por Mwene-kongo ou Ne-kongo, cujo poder se estendia aos territórios do Makoko, Uniamezi, Ambundo, Matamba, Kissama, Angola, Lula e Zenza, a que se podiam acrescentar os ducados e condados (assim crismados pelos nossos cronistas) da Lunda, Bata, Kongo, Luango e muitos outros.
Mapa do Antigo Reino do Kongo[18]
Foi este o território ocupado pelos invasores kongo, conduzidos pelos alukeni, de quem os kongo se orgulham de descender. Embora o reino do Kongo se enquadrasse no sistema matrilinear, o seu regime sucessório não obedecia à regra estabelecida (o sobrinho materno sucedia ao tio materno), a monarquia kongolesa não era hereditária. O rei era eleito pelos principais chefes dos clãs matrilineares, as kanda (linhagem da origem da mãe). No começo, a selecção do rei era feita entre os membros da família real, podendo ser eleito um dos filhos ou sobrinhos do falecido monarca. Pouco importava que a sua linhagem fosse materna ou paterna. Esta particularidade resultava da relação exogâmica do casamento entre indivíduos de diferentes subgrupos. Actualmente ainda são reconhecíveis os seguintes kandas: Kavugi (linhagem da qual faz parte a dinastia "Água Rosada"), Sunda Ndumbu, Kitumba Vemba, Kinanga, Kimiala, Kintinu Necongo, Mpanzu a Nkanga, Vemba Lukani, Kinjinga, Kinemafuta, Panzo Animi e Kinzanza Amalunga.
Carta do reino do Kongo[19]
Estes ensikongo, muxikongo, ou simplesmente xikongos, ao contactarem, pela primeira vez, com aqueles seres de outra cor, que não a sua, tiveram que encontrar um termo para as designar e se aproximar delas sem por isso serem afectados, denominaram-nos então por mindele, plural de mundele, que mais tarde viria a ter o significado de pessoa branca, dando-se a este vocábulo a origem seguinte:
“ (…) Havia nesta costa uma ave aquática branca e grande, (que talvez fosse a garça, ainda hoje abundante no Bengo, a três léguas de Luanda) a qual os naturais denominavam Ndéle. Quando de terra se avistaram as velas brancas do primeiro navio que se aproximou de terra diziam os naturais mu’ndele, como frase abreviada de muene wa nedele, ele é ndele (ou a tal ave branca); mas reconhecendo o seu engano, referindo-se aos brancos, citando o objecto com que se tinham enganado. E assim se chama hoje em Luanda mundele, não só a pessoas brancas, mas os escravos assim denominam sem distinção de côr, qualquer pessoa calçada e trajada à europeia.(…)”[20].
Alguém, com excelente génio, pelas consequências extraordinárias da palavra deverá ter construído esta história. Mesmo assim, registamos que no século XIX, o termo ndele significava alma, espírito de homem ou mulher morta que persegue os viventes e é também o nome de uma divindade, a quem os nativos, nos seus rituais mágicos sacrificavam cabras e galinhas.[21] Como em tudo na vida, existe também a parte da malquerença e relacionado com o vocábulo mundele, existem palavras que não fogem à regra, trata-se do termo kingundo ou kangundo; no primeiro caso, aplicava-se ao mestiço, ou mesmo, ao negro que falasse a língua do branco, visto que, no segundo caso, seria aplicado, por norma, ao degredado, funante ou mesmo capitão do mato (capitão-mor) sempre de cor branca, indicando que se tratava duma pessoa ordinária, grosseira, de baixa condição. Recomendamos que se consulte a obra O comerciante do Mato (2000: 35, 41), para mais pormenores sobre o assunto.
Para um melhor entendimento das relações entre os brancos, que chegavam com os descobrimentos, e os negros, no século XV e XVI devemos dizer que o objectivo dos portugueses, orientados pelo Infante D. Henrique e seus mestres, era a exploração da “selvagem e misteriosa” África negra. Estes homens eram, muitas vezes, recrutados, em Espanha e noutros países, entre a pior escumalha e para o seu recrutamento recorria-se a empréstimos, muitas vezes, sem riscos calculados. Diz a experiência daqueles que conhecem o termo “despojos de guerra” onde estão incluídos mulheres e crianças, que a conquista em terra inimiga não colocava aos invasores problemas humanitários. A cobiça do marfim; das peles; do ouro, o tesouro mais cobiçado (desde sempre) e, por fim, dos escravos, exerciam uma sedução desmesurada nos homens.
O rio Zaire nos rápidos de Yelala[22]
Os principais portos deste tráfego eram na altura, Lisboa e Lagos, onde foram estabelecidas as Casas da Guiné, mais tarde, transferidas para a capital com o nome de Casa da Guiné, logo de seguida, por Casa dos Escravos, as peças[23], termo com que então se designavam os escravos. Todos os autores que se debruçam sobre a época escravocrata utilizam o termo, chegando a ser adoptado nas terras da Ginga, conforme informação de Cardonega[24].
Pelo que fica descrito pensamos ter reunido notas suficientes para se fazer compreender alguns meandros relevantes do célebre Reino do Manikongo, assim chamado no Ocidente.
Reportemo-nos à época em que Diogo Cão, navegador português descobriu o rio Zaire ou N’zadi (reunião de águas profundas), em 1484, ou mais provavelmente, em 1482, uma vasta agremiação de povos existia já naquela zona e constituía o Reino do Kongo. Os portugueses não ignoravam a sua existência, as incursões que foram fazendo ao longo da costa da Guiné e as informações que os seus capitães foram colhendo, permitiam-lhes confirmar com maior precisão a existência de três grandes impérios: o lendário império de Prestes João; o Mwenemutapa (que insistimos em diferenciar de Monomutapa, na medida em que, quando aplicamos o prefixo Mwene, referimo-nos ao senhor cuja origem do poder é sagrado, e Mono designa o pronome pessoal, é o senhor que assim se denomina, como o senhor do Império do Kongo e estas eram as designações mais correntes naqueles tempos para este tipo de individualidades.)
Fotografia Nº Inscrição dos navegantes portugueses no séc. XV, nos rápidos de Yelala[25]
Os povos ribeirinhos que primeiro avistaram os portugueses, ao vê-los mais de perto, com aquele tom de pele, aqueles olhos de cor diferente da sua, aquele nariz afilado e os lábios finos, fizeram-lhes lembrar deuses, até porque vinham do mar. Miravam-nos muito mais espantados que amedrontados, afinal os visitantes eram tão poucos e frequentemente pareciam muito doentes, (ainda nos finais da década de 40 e 50 do século passado, no interior mais profundo de Angola isso acontecia). No entanto, para este povo kongo que considerava o mar domínio dos mortos, aqueles homens podiam ser espíritos e representar os seus antepassados. Foi um grande acontecimento (insistimos em afirmar que um capitão experimentado em contactos anteriores, como era o caso de Diogo Cão, não deixaria nunca de enviar a terra primeiro os seus língua e demais embaixadores afim de auscultarem as reacções das populações, através dos língua autóctones).
Notas de Rodapé:
[1] Bal, Willy
(1979) Afro- Romanica Studia. Edições Poseidon. Albufeira, p.70.
[2] Amaral,
Ilídio de (1996). O Reino do Congo, os
Mbundu (ou Ambundos), o reino dos “Ngola” (ou de Angola) e a Presença
Portuguesa, de finais do século XV a meados do século XVI. Instituto de
Investigação Científica Tropical. Ministério da Ciência e da Tecnologia.
Lisboa, p.16.
[3] Brasio, António, História da Missiologia Esparsos e Inéditos, Instituto de
Investigação Científica de Angola, Luanda 1973, Pg.221
[4] Johnston , Harry (1908) George Grenfell and the Congo .
Hutchinson and Co. Londres. II volumes.
[5] António,
Diogo, Provérbios em kikongo, Uíje,
s/data, pg.5
[6] A palavra
Nkongo, em kikongo quer dizer caçador
e o N antes de Kongo,
refere-se a nobreza, segundo o Dicionário
Complementar Português Kimbundu- Kikongo (1961) de D. António da Silva
Maia, Luanda.
[7] Oliveira,
José Carlos (2000) O comerciante do Mato.
Universidade de Coimbra. Departamento
de Antropologia, pp. 60,61.
[8] Maia, D.
António da Silva Maia (1961) Dicionário
Complementar Português-Kimbundo-Kikongo, Edição do Autor. Ambriz.
[9] Almeida, António de. (s/d) Subsídio para a História dos Reis do Congo. Biblioteca do Instituto
Superior de Ciências sociais e Políticas. Lisboa. (documento policopiado).
[10] Bal, Willy (1979) Afro- Romanica Studia. Edições Poseidon.
Albufeira, p.70.
[11]Gabriel,
D. Manuel Nunes (1981) Padrões da fé –
Igrejas Antigas de Angola. Edição da Arquidiocese de Luanda. Braga, p.17.
[12] Delgado,
Ralph (1946) História de Angola. Edição
do Banco de Angola. s/l, p.163.
[13]Wing, J. Van (1959) Etudes Bakongo : sociologie, réligion et magie. Museum
Lessianum. Section Missiologique, 39.
[14] Brásio,
António (1969) História do Reino do
Congo. Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Lisboa, p.15.
[15]
Rodrigues, Jaime Raul Sepúlveda (1930) Angola
– Districto do Congo. Agência Geral das Colónias. Lisboa, p. 5.
[16] Eduardo
Lopez e Filippo Pigafetta (1591) Relação
do Reino do Congo e Terras Circunvizinhas. Roma.
[17] Brásio,
António (1969) História do Reino do
Congo. Centro de Estudos Históricos Ultramarinos. Lisboa, pp.16 e 17.